05/01/11

Ocupar o tempo

A ocupação do tempo é uma coisa séria. Tão séria que desafio quem me vier falar em passatempo a um duelo nas minhas condições: que leve uma resma de palavras cruzadas, sopas de letras, selos e moedas, as suas armas, eu levarei as minhas, um ou dois filmes e alguns livros mais; ou apenas uma folha. Uma folha e uma caneta – dêem-me papel e tinta, e eu em troca oferecerei o mundo (se o mundo quisesse ser oferecido por mim). Não, não é de uma arrogância indesculpável eu achar que ocupo melhor o tempo a ler um livro do que a preencher quadradinhos com números, grelhas com cruzes e borrões; pode não ser melhor, mas é pelo menos mais estético. Portanto, não falamos de uma questão de ética. E mais do que baixar o nível, eu estou a levantar a moral dos filatelistas e numismatas que me lêem – amigos, o vosso passatempo é tão importante como o meu; ambos servem o mesmo propósito, gastar o tempo – enquanto a ilusão for possível (gastar o tempo) também continua a ser uma hipótese teórica inventar o tempo. Para que foram inventados os relógios, senão para isso? Dominar, encontrar objectos que preencham a planura niilista da existência. E esse sacana que ri nas minhas costas é assim mesmo: não é exclusivo, aceita ser cheio por qualquer um ou de qualquer coisa. O tempo é como um terreno vazio num município com presidente corrupto, à espera do loteamento que virá. Pode acontecer que seja construído um belo edifício com fins culturais, uma obra de um arquitecto moderno de um ateliê nórdico, uma marca essencial na paisagem urbanística. Mas também pode suceder que seja construído um qualquer monolito de cimento para habitação social que depois é pintado de várias cores para disfarçar o puro horror da desarmonia geométrica. (Bem, não é uma boa comparação; quantas vezes acontece a primeira situação?) Seja como for, a ideia é essa: se do ponto de vista da utilidade do tempo, é tão inútil ler um livro como coleccionar bules de chá, por que razão escolher a primeira opção em detrimento da segunda? Ah, mas a culpa é da sociedade! A sociedade empurra alguns mortais para o abismo da pretensão, para o flagelo da Arte – com arrebitada maiúscula e tudo. E pior que um esteta consumado é um criador julgando que, ao escrever, está a enganar o tempo; não há força alguma que consiga transformar a natureza do tempo, ser uma espécie de espaço em aberto – não é contradição nem jogo de palavras; se pensar bem, chegará à conclusão que recordar o que passou depende apenas de um movimento (imaginário) no ar, um estender de mão milagroso. E a estreita relação entre espaço e tempo há muito foi autorizada pela Ciência. Ainda hoje lamento não ter avançado muito na colecção de selos iniciada aos treze anos. Aquela caixa cheia de papel e tinta de algum modo sorri para mim, lá longe no tempo (vêem?) A ocupação do tempo é uma coisa séria, e por isso se tivesse continuado (sem terminar, o coleccionador nunca dá por terminada a sua obra) eu seria alguém acima de qualquer suspeita, não o pretendente a um trono vazio na minha família: aquele que recusou a seriedade da vida e trocou-a pela Arte. Perdi-me.
E talvez não possa reencontrar-me enquanto a felicidade sentida pela recusa do coleccionismo comece a fazer algum sentido. Tenho várias pistas a seguir. Ainda bem. Há o fetiche dos coleccionadores literários. Desde Nabokov, o real amante de borboletas e ninfetas inacessíveis, até ao inventado homem que constrói puzzles a partir de pinturas, no romance A Vida - Modo de Usar, de Perec, há muito por onde escolher. O ofício tem uma mitologia associada, romântica à partida, mas que de modo inevitável leva a reflexões sobre a natureza dos actos do coleccionador. Que obsessão, que espécie de loucura precisa ele? Não é verdade que os psicopatas em série são coleccionadores de cadáveres, de rituais macabros, de objectos de morte? E João de Deus, o outro João César Monteiro, não é ele um esteta perverso que gosta de guardar pelos da púbis de jovens donzelas? Poder-se-á dizer que um artista confere uma aura de respeitável grandiosidade a algo que a maioria daqueles que a ela se dedicam não merece. Um filatelista, não esquecer, é um ser sombrio e chato que prefere estar enfiado num quarto, à luz de uma parca vela (deixem-me manter a imagem de outra época), mudando de lugar pequenos pedaços de papel com uma pinça em vez de, digamos, conviver. Nada contra a liberdade alheia, diga-se, mesmo quando ela é desperdiçada (lá está, gastar o tempo); mas a liberdade é o que se faz com ela, se quisermos acomodar a outra frase sobre a vida a esta espécie de sinónimo da mesma. E haverá colecções porventura mais estimulantes da imaginação, se é que se pode ir por aqui. No limite, será possível coleccionar tudo; há quem se entretenha a somar desgostos amorosos, por exemplo, e a dedicação e as horas passadas no quarto a meditar sobre o amor acabado dão todo o ar de coleccionismo. Há quem prefira o contrário disto, experimentar mulheres – Casanova, o grande coleccionador do amor vão – ou despachar homens. Não sei se o coleccionador amoroso tem consciência do seu passatempo; e talvez nem se possa caracterizar esta actividade como coleccionismo; não há uma clara intenção do amante serial, nem uma vontade de um dia terminar a colecção – é claro que, tratando-se deste tema, “vontade” é a palavra-chave: por muita vontade que se tenha de terminar uma colecção, a sua natureza perene, infindável, é o que leva alguém a iniciá-la. Seria fácil fazer uma analogia com a vida, por aí, mas não quero contribuir para essa colecção maldita: a dos lugares-comuns que usamos para tentar compreender o que é a vida.
Seria como o quadro fragmentado, transformado em puzzle, do velho de Perec. Ou como a colecção de caixas chinesas amada por uma personagem de romance – existe, não existe? Caixas chineses para uma rapariga de olhos amendoados, bonecas de porcelana para a levemente gótica e tresloucada adolescente de um conto de terror, animais empalhados para o comum empregado de motel ainda a viver com mãe. Norman Bates, o coleccionador que ninguém gostaria de ser, no tal motel à beira da estrada – antiga via importante, entretanto abandonada, e isso lembra-me todos os lugares desamparados do mundo. Tonino Guerra elenca as igrejas abandonadas de Itália e completa o passatempo escrevendo um poema a cada uma delas. Uma colecção de poemas dedicada a um conjunto de edifícios em ruínas. Velhos hotéis à beira-mar; antigas casas senhoriais; estalagens perdidas em localidades que em tempos eram pontos de passagem importantes; prédios na cidade, entalados no seu triste ensimesmamento entre novas maravilhas da arquitectura moderna. Podia pegar num bloco de papel (há quem os coleccione, mas parece-me mais uma banalidade imperdoável) e ir pelas ruas de Lisboa desenhando fantasmas; usar uma máquina fotográfica. Mas falta-me – eu sei há tanto tempo – o método para tal tarefa. Talvez por isso nunca tenha conseguido continuar uma colecção. Os despojos devem estar ainda dentro da cómoda no meu quarto de infância – ruínas, apenas ruínas agora: uma caixa cheia de selos de diversas proveniências, carimbados com datas que vão, se bem me lembro, desde os anos 30 até aos meus doze anos. Desordem, esquecimento. E as moedas, ainda estarão lá, ou terei oferecido essa colecção ao meu irmão, também ele não muito dedicado numismata? Prefiro continuar com os meus actuais passatempos.
E tenho muito que contar: a pilha de livros abandonados – como as igrejas de Tonino – à espera do tempo, da paciência, da dedicação que merecem. Estão ali, pousados numa aparente ordem, acusatória, difamante. Não os li, talvez nunca os leia, alguns certamente voltarão para a prateleira – infame destino -, para o local de repouso eterno de um livro nunca lido até ao fim. Fazem companhia a todos os textos que nunca terminei, pertencem à mesma linhagem. Todos os textos que nunca terminei e não apaguei, que continuam a existir para me lembrar de duas coisas: o meu falhanço mas, sobretudo, a minha esperança – algum dia haverá um último ponto final para todos os meus cadáveres adiados. E este será mais um resgatado ao limbo. Um item fora da colecção, um morto ressuscitado. Ele vive.

- Texto publicado na revista Alice -

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