08/11/10

A Rede Social



Ontem, fui ver A Rede Social, de David Fincher. Hoje, espreitei duas ou três críticas nos jornais portugueses. Seria provável a diferença de opiniões (não vou falar, para já, de cinema). Os críticos que não têm qualquer ligação às redes sociais afirmam, sem dúvidas, que Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook, não sai bem deste filme. De resto, esta ideia tem sido quase unânime. O próprio não terá gostado, mas não a ponto de ter processado alguém ligado à produção do filme. O que é sensato; e se compreende: eu, fiel ao meu estatuto de assertivo utilizador das redes sociais - pelo menos enquanto dura o entusiasmo inicial - acho que, somando tudo, a imagem de Zuckerberg pouco será afectada pelo filme. O americano de classe média que chega a Harvard por mérito próprio; o geek dos computadores que, antes de chegar à universidade, já vira uma invenção sua ser aproveitada pela Microsoft; o anti-social que criou o brinquedo favorito dos misantropos da idade moderna. Tudo isto, claro, mas não só: fez história, claro, e o argumento de Aaron Sorkin não se cansa de reforçar esta ideia. "Amigo", a palavra que em tempos era reservada para aquela meia dúzia de pessoas com as quais se poderia contar em qualquer situação, ganhou outro significado. Mais do que criar uma nova rede social, Zuckerberg redefiniu, até certo ponto, as relações entre as pessoas. Sem forçar a sociologia barata, a verdade é que essa meia dúzia de sortudos continua a existir para além do Facebook. Com sorte, nenhum dos amigos será amigo no Facebook; não lêem o blogue que escrevemos à escondidas da namorada; não fazem a mais pequena ideia do que será o Twitter - essa maravilha recém descoberta pelo Presidente que depressa cairá no esquecimento. Mas as relações surgidas no Facebook, sujeitas ao escrutínio da rapidez e do arrependimento - a certa altura, uma linha de diálogo do filme repete esta ideia: na Internet, não se escreve a lápis, mas sim a caneta; a ironia da analogia é evidente: da caneta riscando no papel tinta definitiva ao byte fixando informação numa rede de servidores sujeita ao desaparecimento, um passo curto na história da Humanidade - serão tão provisórias como o meio que as suporta. E é dessa intangibilidade virtual que trata, numa segunda leitura, o guião de Sorkin, repetindo a ideia batida que os info-excluídos têm dos viciados em redes sociais: quem não consegue fazer amigos a sério, mete-se na Internet e reinventa-se, torna-se outro (e sem recorrer a alucinogénios ou a heterónimos pessoanos).
E quanto à obra em si, seria possível filmar a alienação e o "ar dos tempos", a velocidade e o enclausuramento virtual sem cair no moralismo paternalista (lembro-me de Afterschool, um filme recente que não conseguiu escapar à ratoeira) ou no ritmo videojogo que parece ter sido adoptado pela produção mainstream de Hollywood? Foi, claro, possível, porque se trata de David Fincher. Não falo do realizador da lamechice intragável cujo nome não vou aqui escrever - demasiado comprido - mas que supostamente adaptava um conto de F. Scott Fitzgerald. Adiante. Fincher voltou, e acredito que não lamentará o Oscar ganho com a aventura anterior; contudo, o regresso a temas antigos - a tentação do ensaio socializante sobre a Idade Moderna, a subversão moral do indivíduo moderno, a alienação dos solitários individualistas com quem toda a gente se cruza diariamente (a todos nós, utilizadores do Facebook, caminhamos para este Admirável Mundo Novo) -, certamente o terá rejuvenescido uns anos (o mergulho na loucura do quotidiano é sempre revigorante, dizem). Da psicopatologia niilista do assassino de Seven ao autismo materialista e, no limite, execrável de Zuckerberg, um curto, rápido, movimento. Não é preciso muito, de resto: o material de partida, o argumento de Sorkin, é inteligente, a um passo de ser brilhante, apesar da receita ser conhecida; partir do particular - a ascensão de Zuckerberg, génio carente que acaba por perder todo o amigo (é só um, parece) no caminho para a glória (e os milhões ganhos são apenas um pormenor da história, nascida de uma vontade de recuperar uma namorada que se atreve a desdenhar das suas ambições (a cena inicial é, sem rodeios, das melhores coisas que eu vi no cinema dos últimos anos) - para o universal - bom, não preciso de dizer mais, quem não quereria estar no lugar do fundador do Facebook? Os gregos fizeram-no há uns bons milhares de anos; que se tenha tentado fazer agora aplicando a fórmula a um conceito que parece ser volátil, terá sido um achado. Mas enfim, como falamos de cinema, a arte do presente contínuo que melhor consegue fixar o passado, o atrevimento terá outra dimensão. Este é o nosso tempo; e o cinema encarrega-se de o aprisionar, de o guardar para as gerações futuras, essas que olharão - ou recordarão - o Facebook, do mesmo modo que nós olhamos para uma pena de ganso num tinteiro. Facebook como cliché romântico. Quem diria?

(O final do filme é tão bom como o início. E a música dos Beatles, Baby You're a Rich Man, rima, de forma irónica ou nem por isso, com a música do final do Clube de Combate, Where is My Mind, dos Pixies. Sim, claro: não nos esqueçamos da esquizofrenia, mais um tema caro a Fincher. Foi você que falou em auteur?)

- Originalmente publicado no Arrastão -

04/11/10

Contrato com o leitor

Sentado no meu cadeirão, lendo Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, vejo o céu ir ganhando as cores do fim do dia, e o tempo a ir atrás, desaparecendo para lá dos telhados cinzentos. A verdade é que não leio, escrevo. E escrevo achando que é cada vez mais reduzido o tempo que temos para deixar o tempo passar, fluir sentindo cada minuto desaparecer. A leitura é uma boa medida do tempo interior. Se deixarmos os sentidos levantar voo, melhor; dá para pensar em tudo o que arquivamos, deixamos para pensar depois, dá para que o corpo se vá infiltrando no pensamento, sentir o cheiro da pele, a pulsação, o movimento interno a construir a imobilidade externa: tudo é imóvel, fora do corpo, o tempo é uma larga extensão – como o areal de uma praia vazia - que a memória percorre.
Li o livro? Acompanhei a história desse médico inverosímil, o seu percurso desassossegado para o nada? Se o li, desvaneceu, confirmo a intuição de Maurice Blanchot. A história já não se encontra no lugar onde estava: aquela hora em que eu, sentado no cadeirão ao fim da tarde, percorri as páginas em sossego.
Uma acumulação inútil sobrepõe-se a tudo. Não sou um pessimista, mas convivo muito bem com o realismo do desaparecimento. Brinco com isso, escrevo ludicamente sobre o assunto, leio autores que desapareceram ou autores que dedicam as suas histórias ao tema. As estantes enchem-se de livros em que eu nunca irei pegar, nem sequer para ler as primeiras linhas. Se o que leio irá desaparecer, salvo milhares de livros do esquecimento - tudo o que não leio continuará a existir.
Alguém me sopra ao ouvido: as histórias que os livros contam nunca desaparecerão; sobreviverão aos escritores, aos homens. Não aceito esta ideia antiga, o lugar-comum. Um mundo sem homens, no qual as histórias insistem em viver, guardadas em bibliotecas borgeanas que ninguém poderá visitar. Imagino o ar de uma biblioteca vazia - o pó rarefeito cobrindo os livros, lentamente, até que as palavras escritas nas capas se deixem de ler; até que desapareça o nome dos autores; e a história que ele conta. A biblioteca, contudo, não está lá. No meu cadeirão metafísico, apenas existo eu e o livro que leio - a biblioteca é um esforço da imaginação, portanto mais material do que algo que tenha uma existência real e eu nunca tenha imaginado.
Contaram-me uma história. Um escritor morre, e de um momento para o outro - aquele derradeiro segundo em que a vida regressa ao brevíssimo presente – todos os livros escritos por ele, publicados e republicados, desaparecem de todas as estantes de todas as bibliotecas, de todas as livrarias, de todos as casas ou edifícios onde sobreviva ainda uma palavra do autor. A obra morre com a morte do autor, assim a história me foi contada, e eu prometi não a contar de novo, amedrontado por uma superstição sem nome. Esse escritor, todo o tempo que viveu tentou apagar, meticuloso, o instante imediatamente anterior, escrevendo. As histórias eram o espelho do seu método, como se a escrita fosse um revólver e a memória a bela mulher que nasceu para morrer às mãos de um assassino contratado. E ao escrever ele traía o seu contrato, fixando em papel o passado. Mas havia um trunfo na manga, um plano subterrâneo. O que ele escrevia era uma traição ao que tinha vivido. Se pudesse existir apenas como o autor das suas histórias, era como se fosse uma personagem, alguém que, de verdade, nunca foi. A subversão era tão sofisticada que ninguém daria por ela; portanto, não chegava a ser. Ao morrer, deixaria uma obra que era o contrário do que tinha vivido, e ninguém se lembraria. No entanto o plano tinha uma falha: a sua falsa vida, a que os livros guardavam, declina o convite para eternidade e também ela morre com o autor. Trágica derrota.
Talvez Enrique Vila-Matas seja um traidor, quando se lembra de um Robert Walser que nunca chegou a conhecer caminhando sobre a neve naquele célebre dia de Natal, procurando o esquecimento. Talvez se imagine no lugar das crianças que encontraram o escritor suíço deitado no caminho, um homem desconhecido que acabou por lhes mudar o curso da vida. Um escritor morto é tal e qual um estranho morto sobre a neve, e o orgulho que convence Vila-Matas do contrário é uma terna ilusão que apenas o pode levar à absoluta infelicidade. Consigo perdoar Vila-Matas, e sentir até alguma cumplicidade ao imaginá-lo visitando a casa de saúde onde Walser passou os anos finais da sua vida. Ele e a sombra do Doutor Pasavento – figura sombria resgatando de um filme outro célebre doutor, Caligari, o médico dos prodígios demoníacos. Pasavento deixa de dar notícias ao mundo e exila-se na sombra, como Caligari, trazendo pela mão um Vila-Matas que começa a existir através das suas personagens. A imagem que eu tenho dele é de um duplo de Pasavento ou do narrador de Paris Nunca se Acaba, e ele gostaria com certeza de saber que o café de Barcelona onde costuma escrever é mais real – e romântico – numa crónica que eu li do que é na realidade. Um banal café na maior praça de Barcelona e, ao fundo, ocupada por um grupo de barulhentos turistas americanos, a mesa onde nasceu Pasavento. Pasavento, de destino amaldiçoado pelo livro pousado sobre a fórmica, o livro de Blanchot onde este fala dos escritores que tendem para o desaparecimento.
Agora é, quem sabe, tarde para o arrependimento, e descubro que o que acabei de escrever perdeu toda a urgência; li o livro do doutor há dois anos e sete meses, era Inverno e chovia. Apaguei, no que escrevi, algumas palavras. Era assim, a frase: Sentado no meu cadeirão, lendo Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas, vejo o céu ir ganhando as cores do fim do dia, e o tempo a ir atrás, desaparecendo para lá dos telhados cinzentos e das chaminés de Inverno, fumegando. Não queria ceder tanto à literatice da autofagia, mas cada nova palavra que se acrescenta ao texto o conduz para outro caminho. Por cada frase lida há outra frase morta, desaparecida. O presente perde a voracidade e a máscara que uso para o enganar cai (mas não se pense numa tragédia grega).
Em Barcelona fazia tanto calor como agora; era Agosto, fui à praia e aos habituais sítios turísticos e não encontrei Pasavento. Talvez ele estivesse nessa altura de férias numa ilha mediterrânica – em Agosto os barcelonenses fogem da cidade e os poucos que ficam ou são loucos ou escritores – assim escreve Vila-Matas. Eu fui um dos indesejados, um vírus, uma praga na cidade, um dos muitos milhares de turistas que horrorizam os loucos que ficam. E entrei no café da Plaza Catalunya à procura já não sei se de Vila-Matas ou de Pasavento, e encontrei apenas turistas suando sob os panamás e as camisas coloridas, debicando alarvemente (não é contraditório) tapas e bocadillos, sorvendo cervejas para esquecer o calor e o desejo despontado pelos bandos de adolescentes nórdicas que se passeiam pelas ramblas, imunes ao encanto alarve dos homens de meia-idade.
Mas nada do que escrevo tem a ver com esquecimento nem com o cadeirão onde me sentei e recordei, no passo de uma frase sem nada de especial, aquela tarde em Barcelona. O cheiro de uma madalena é um salto sobre a ponte, sem elástico. Arrumo os livros nas tristes prateleiras da memória. Transforma-se o livro em coisa inanimada, sem vida, um breve lapso de tempo preso num irrecuperável fim de tarde, a que nunca poderemos voltar. Classifica-se, cataloga-se, destrói-se a alma de um livro.
Leu o texto precedente? Durará o tempo em que eu o escrevo, recuso que algum papel o condene ao esquecimento.

(Texto publicado na revista Alice, reformulação de um texto antigo).