Gosto muito das histórias do Rui Manuel Amaral. Tanto, a ponto de achar que elas não mereciam esta sinopse (ou a sinopse não as merece, tanto faz) - mais um termo da "modernidade" livresca que é saudável desprezar - numa livraria on-line. Seria tão bom se os autores decentes pudessem dispensar as idiotices de que a publicidade se lembra. Um livro não é um pacote de massas. Ponto.
27/09/10
Nirvana
Agora que já tenho idade, e portanto juízo, suficiente para julgar os Nirvana pela qualidade musical, e valorizar esse lado da banda mais do que a simbologia que lhe está associada, lembro-me de um tempo em que a música pouco tinha a ver com grandes músicos, refrões marcantes ou riffs de bateria irrepreensíveis. Quando gostava de música sem saber muito bem porquê, sem conhecer o suficiente nem ter lido uns quantos livros sobre a razão de gostar. Nirvana foi música em estado puro, sem racionalização absurda ou relativizações imbecis e redutoras. Tenho saudade disso. Da pureza e da descoberta, a sequência perfeita desse meio termo romântico entre o fim da adolescência e o princípio da idade adulta. Espero que os putos de agora ainda saibam sentir isso. Acima de tudo, procurar.
26/09/10
24/09/10
Arte poética
Escreve primeiro uma frase
E corta-a aos bocadinhos
Mistura-os e deixa-os ficar
do modo que vão cair
Não tem qualquer importância
A ordem que daí resultar.
Lewis Carroll
E corta-a aos bocadinhos
Mistura-os e deixa-os ficar
do modo que vão cair
Não tem qualquer importância
A ordem que daí resultar.
Lewis Carroll
23/09/10
O escritor popular
O escritor popular é um escritor sob suspeita. Mais ainda quando o escritor popular consegue ser popular e alegrar as franjas certas, os fraques e as cartolas, os carros alegóricos, a dançar. O escritor popular, quando se lança, tem sempre alguém a amparar - e leva as luzes e os microfones, a bailar, num estrépito de carrossel e música. Mas escreve. E sua. Dança e lança, luminoso escritor popular, amado pelos leitores, a jóia precária da saison. Coitado do escritor popular, em permanente andança e cagança, cedendo à solicitação de ocasião, ao cumprimento, à vénia. Sorriso e salamaleque, boa presença. E a literatura, o que será dela? Dispensável. Nada que um bom vinho não possa disfarçar. E um livro é apenas um conjunto de páginas agrafadas, ao qual se cola um determinado preço. Minudências. As tripas, o coração e a cabeça oferendas na bandeja, excrescências.
21/09/10
Chá quente e torradas
O frenesim da reentrada, útil, exercício de vaidade ou motor da mecânica perpétua da novidade, é um paradoxo da estação. O Verão vai-se diluindo na chegada mais rápida da noite. De manhã, saímos de manga curta e sentimos o frio leve de Outono. Esperamos e receamos o último dia de praia - e o fim de tarde, sol baixo, que ele nos oferece. E depois achamos que o Verão deixou de ser necessário, e será melhor ficar em casa, à espera da primeira chuva. A realidade troca-nos as voltas. O regresso à rotina diária é uma violência - o mundo acelera, mas o fim do Verão mereceria o som triste de uma valsa tardia. Não quero reentradas, nem rentrées, apenas um chá quente e algumas torradas - mesmo que não beba chá, nem coma torradas.
18/09/10
17/09/10
15/09/10
Penelope
Há poucas divas no cinema actual, e as que há nada têm que ver com as de antigamente. São imperfeitas, desiludem-nos, aparecem nos tablóides a cores, carregando sacos de compras, divorciam-se e vêm para imprensa cor-de-rosa lavar a roupa suja dos seus escolhos amorosos. Além disso, o cinema deixou de as servir, não temos Lubitsch ou Billy Wilder ou Howard Hawks a trabalhar nos filmes de produtor, como acontecia na idade de ouro de Hollywood. Papéis bons, grandes interpretações, figuras maiores do que a vida encarnadas no grande ecrã por actrizes intocáveis, tudo se perdeu. Restam talvez Deneuve, Binoche e Hupert em França (Isabelle Adjani trabalha pouco e é irregular nos seus desempenhos). Na América, nenhuma veterana, a não ser Meryl Streep, mas como lhe poderemos perdoar o desfile de maus filmes? Daí para baixo, o deserto: Michelle Pfeiffer recusou o estatuto e perdeu-se. E todas as outras são claramente sobrevalorizadas, a começar em Nicole Kidman e o seu amigo Botox e a acabar na trupe de ex-modelos que ganharam o Oscar a fazer de coitadinhas em filmes que rapidamente caíram no esquecimento.
Enquanto Scarlett Johansson não irrompe da crisálida, teremos sempre a europeia de importação, a única possível herdeira de Greta Garbo ou Ingrid Bergman. Talvez nunca perca o sotaque espanhol - o que joga a seu favor, se pensarmos em Garbo, por exemplo. O que temos é uma espantosa actriz. E enquanto houver Almodovar (esperando que haja mais Woody Allens que reparem nela), haverá Penelope Cruz. A diva possível.
Dor de dentes
O cronista do quotidiano atrever-se-à a tudo para preencher o papel em branco. Procura assunto nos jornais, recorda acontecimentos que julga ter esquecido - ou que esqueceu, e pensa ainda lembrá-los -, pega em frases deixadas a meio e recomeça-as, apaga e volta a tentar. Nada o fará desistir da sua função. Metódico, é pior que um parasita - alimenta-se da vida dos outros e nada oferece em troca. Sobretudo, arrisca-se a chegar a um dia em que irá escrever sobre a dor de dentes que não tem, ou pior, sobre o tema que não encontra para a sua crónica do quotidiano.
Eu, por outro lado, tenho mesmo uma dor de dentes e por isso posso afirmar, como se fosse um político, que falo verdade quando escrevo que tenho uma dor de dentes. Mortifica, desgasta, transforma o pensamento numa papa mole e sem préstimo. Não há comparação que resista à dor de dentes, metáfora que sobreviva à puta da realidade. O dente metafórico seria uma bela invenção - o que impedisse de perder alguns minutos numa reflexão inútil sobre o dente real. Nada original. Talvez não tenha uma dor de dentes porque o dente que me doía é uma sombra vaga na cratera deixada pelo dentista. Poderia falar dos meus movimentos intestinais, como o poeta concretista de Chesterton. Nem mais, nem menos. O justo.
13/09/10
07/09/10
Dançar com Zurlini
- A menina dança?
- Sim, obrigado.
Roberta pousa o cigarro e o copo e dança com Carlo ao som do jazz de Mario Nascimbene. Dança, dançam os dois, dançam e sabem que o fio que os une – o desejo, o desejo – supera a tragédia que os aproximou. O marido de Roberta morreu na guerra, Carlo é um burguês entediado, namorisca com Rosanna e espera que a sua vida passe ao largo do tempo, da guerra, e a juventude seja eterna.
Tudo começa na praia, Verão, um grupo alegre banhando-se na água cálida do Mediterrâneo; estamos em Rimini, a estância onde nasceu Fellini, o nome grande do cinema italiano que está nos antípodas de Valerio Zurlini. Os lugares que os aproxima são também território de afastamento – a cidade que serviu a Fellini de motor da memória, inspiração, berço de uma criatividade ostensiva, estrepitosa e freudiana a ponto de se tornar fastidiosa, serve de mapa da intimidade a Zurlini, cada ponto cardeal nó de um desejo perseguido por Carlo e Roberta: a praia, onde a intrusa ao grupo, a mulher quase balzaquiana que trata de uma criança, perto dos jovens, desperta pela primeira vez a atenção de Carlo, a praia sobrevoada por um avião alemão desviado da sua rota, a intromissão inicial de realidade no idílio do grupo, a praia onde mais tarde Carlo e Roberta são descobertos, noite escura, por um polícia que relembra a Carlo a fuga à guerra – belíssima sequência, pela sombra, plena de silêncio. Princípio, meio e fim naquele lugar fora do espaço – uma língua de areia junto ao mar, o tecido urbano a dois passos – e fora do tempo, suspenso na beleza dos actores, na sua eternidade fátua.
O marcado contraste entre o tempo da acção – a Segunda Guerra Mundial – e o tempo vivido primeiro pelo grupo de jovens e depois pelos amantes, é o mote do filme, tema repetido por Zurlini ao longo da sua restante obra. A passagem dos anos ou traz a desilusão ou a queda, e à ingenuidade e à ilusão da juventude sucedem o cinismo ou a amargura. Em O Deserto dos Tártaros, derradeiro filme de Zurlini - adapta a obra homónima de Dino Buzzati - assistimos ao mesmo processo: Drogo (Jacques Perrin) é um jovem militar colocado num forte situado na fronteira de um país – imaginário, e esta é outra chave que o realizador nos oferece: a paisagem irreal, as cores do deserto, os tons da fortificação, o isolamento, vão criando um espaço fora do mundo e do tempo. Há quantos anos esperam os soldados pelos Tártaros? E Drogo, o jovem inocente que busca a glória da vida militar, saberá que o futuro apenas lhe trará a saciedade inútil da repetição? A intenção de Buzzati tem a perfeita ilustração no rosto de Perrin: a jovialidade dá lugar à crispação, a beleza à velhice prematura, a esperança (palavra tão falsa) à resignação e à queda. Não precisamos de reafirmar os evidentes paralelismos com a vida, a sua estrutura e o esquema simples da existência: esperar, esperar sempre por algo indefinido que acaba por não acontecer, a revelação de um sentido. A chegada dos Tártaros é o sonho possível.
Regressamos ao filme mais antigo, intimista – a câmara flui com languidez pelos corpos dos actores, aproxima-se, os breve close-ups de uns dedos tocando noutros dedos, dos olhos de Carlo procurando os olhos de Roberta enquanto a câmara dança com eles. Esta proximidade é como uma melodia de fundo no filme que serve de tela para outros temas: a guerra, a luta de classes, a nobreza. Mas o tema retorna de forma obrigatória – Um Verão Violento é um melodrama, uma história de amor que consegue cristalizar a beleza mundana de Eleonora Rossi Drago (Roberta) e a fome de vida de Jean-Louis Trintignant (Carlo). Na cena crucial do filme, Rosanna (Jacqueline Sassard), a pretendente traída, segue os dois amantes – já o são, antes de sequer se tocarem – e observa da varanda o primeiro beijo. Espantosa sequência, espantosa sobretudo pelas escolhas de Zurlini: no primeiro momento de amor, um plano afastado, em suave picado, e estamos no lugar de Rossana, a despeitada. Estamos, e sempre estivemos, mas não tínhamos ainda percebido. E depois, um ou dois segundos depois, o primeiro corte e descobrimo-nos no lugar dos amantes que percebem estar a ser observados. Contra-picado suave e vemos o espanto de Rossana, a confirmação da suspeita, mas também o fim do feitiço – Carlo e Roberta separam-se, o tempo retoma o seu andamento, e eles sabem que transgrediram.
O Deserto dos Tártaros, apesar de ser uma co-produção de vários países europeus, com um elenco multinacional e o peso de uma grande produção – Zurlini teve vários problemas para terminar o filme – não deixa de ter um nítido cunho de autor. Os espaços do forte são fechados, claustrofóbicos: a intimidade, que em ambiente masculino toma a forma de camaradagem, é forçada pela situação - não só o aquartelamento mas sobretudo a pressão do espaço exterior, amplo, até ao limiar do horizonte. As muralhas do forte raras vezes são transpostas – apenas do lado de cá para entrarem novos soldados e saírem para novas colocações, e uma ou outra breve incursão em território inimigo. Mas estas incursões são vistas como perigosas, o que sublinha a sensação de território de ninguém onde o forte está implantado. O deserto não é apenas onde está o inimigo, é a miragem de liberdade experienciada pelos soldados; entre a morte e a espera, entre os ataque dos Tártaros e a abdicação, apenas pode haver uma escolha, uma vontade, o destino de qualquer homem de guerra, mas o tempo passa e esse desejo nunca é satisfeito. Estamos enclausurados com os soldados no forte, a caminho de nada.
Se a guerra é uma ideia vaga, algo que aconteceu no passado e pode voltar a acontecer no futuro – e entretanto o filme mantém-se nessa zona suspensa entre duas inexistências – em O Deserto dos Tártaros, em Um Verão Violento ela vai-se infiltrando no tecido da realidade (uma realidade sonhada, já sabemos), através de pequenos sinais, sintomas de mal – o avião alemão na praia, notícias da guerra na rádio durante a festa (e a música pára, a alegria cessa), o polícia que questiona Carlo – até tomar conta de tudo, da vontade das personagens e do rumo do filme. Quando os dois começam a encontrar-se regularmente e o caso torna-se quase familiar, Carlo dá-se conta da tragédia que ensombra Roberta: o marido morreu na guerra. Os seus hábitos burgueses, hedonistas e despreocupados, tornam-se um terrível defeito, não sabemos se aos olhos de Roberta, mas certamente para si: o confronto com o mártir de guerra, um fantasma (inventado?) acaba por levar Carlo à descoberta da idade adulta. Lentamente a urgência de uma decisão, a pressão da violência, transforma a natureza do amor sentido pelos dois. Carlo tem de se alistar, Roberta teme nova tragédia, e tudo acaba por culminar na fabulosa sequência final, quando o comboio em que Carlo e Roberta seguem é bombardeado. O génio de Zurlini evidencia-se: a montagem acelera a acção, apressa a fuga dos amantes e serve na perfeição o cenário de batalha, mas a câmara nem por um momento se afasta dos dois, captando-os no momento decisivo, quando Carlo tem de escolher entre a guerra e a fuga. Ele sabe que é um jogo perdido à partida: se partir pode morrer, se ficar é preso e perde Roberta. Mas o futuro não existe para além do filme. Ele deixa partir Roberta e assim conquista-a, sem condições.
Valerio Zurlini é o grande realizador italiano esquecido – da mesma linhagem de Antonioni, mas menos vanguardista, menos interessado no mecanismo do cinema e mais em fazer nascer emoções no espectador. O melodrama é o seu território, mas as suas armas não são aquelas que associamos ao género clássico de Hollywood. Não se trata de grandes histórias de amor filmadas em Technicolor, artificiais (muitas vezes artificiosas), tear-jerckers inesquecíveis com actrizes em modo de sobre-representação e cenários coloridos e mais ou menos camp. Também estamos distantes do neo-realismo italiano, de Vittorio de Sicca ou do primeiro Rossellini. Os sentimentos são discretos, as emoções contidas, a câmara subjectiva quanto baste e quase sempre próxima das personagens. Num filme de grande orçamento como O Deserto dos Tártaros, Zurlini esvazia a solenidade da paisagem e entretém-se a filmar as relações entre os soldados, a registar a evolução existencial de Drogo. Parte do quadro maior e aproxima o olho cinematográfico do pormenor, enclausurando os actores, para depois filmar o deserto em planos que sublinham a sua solidão. O efeito contrário é sentido em Um Verão Violento: da banalidade fútil de um grupo de jovens em férias e de um casal que daí nasce – o quadro intimista – ao grande plano da guerra que desde o início se ouve em fundo. A história privada de Carlo e Roberta – o tempo fora do tempo - apenas ganha importância quando o ruído da tragédia pública se torna demasiado forte para ser ignorado – o regresso a um tempo real – o Verão de 1943, o ano em que os Aliados invadem a Sicília e o Sul de Itália, o Verão violento do título. Se esta violência se refere à paixão vivida pelos amantes ou à guerra, pouco importa, e a intenção de Zurlini certamente seria atribuir os dois sentidos à palavra.
Zurlini dança connosco como Carlo dança com Roberta: a sua câmara seduz, como seduzem todas as coisas belas e perecíveis, a eternidade perdida das personagens. Enlevados pelo elegante movimento da dança, só nos resta a entrega, tão perdidos como Eleonora Rossi Drago nos braços de Jean-Louis Trintignant. Aquele primeiro beijo…
(Texto publicado inicialmente na revista Alice.)
05/09/10
Uzak
É fácil
É fácil começar a escrever quando se tem uma data por cima. Um diário é uma prótese para todos os aprendizes de escritor desse mundo, todos os coitados que apenas podem olhar para o palácio, promover o génio alheio. E este diário, mais do que um pretexto para começar a escrever, é um silenciamento, um exorcismo, ou o relato impecável de um condenado. Começar pela principal falha, o pior defeito do que escrevo, que é não poder prever até que ponto as palavras de agora serão ultrapassadas pela realidade, e o presente será boicotado pelo que virá, é mais do que um acto desprovido de sabedoria – é assumir a derrota.
04/09/10
Duas vezes duas
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