28/03/09

Grande público e outras invenções

O que é um blockbuster? De acordo com os dados que temos, fornecidos pelos distribuidores nacionais, nos últimos anos tem-se vindo a assistir a um declínio no número de espectadores que vai ao cinema. Sempre que sai uma notícia destas nos jornais, são apontados vários factores, entre eles o boom do DVD, pirata e legítimo. Contudo, poucos cinemas fecharam em Portugal (com a excepção de projectos megalómanos como as salas do Freeport de Alcochete) e os multiplexes pipoqueiros multiplicam-me, acompanhando a abertura de centros comerciais, ameaçando saturar um mercado naturalmente limitado - e com a crise, a esperada crise, a implosão do hiperconsumo, iremos ver muito elefante branco, tristes fantasmas do capitalismo, nos anos que virão.

Mas que cinema se verá por cá? O filme mais visto na semana que passou em Portugal foi Gran Torino. Três vezes mais espectadores do que a segunda estreia da semana, Hotel para Cães, que eu não sei nem quero saber o que seja. Um país de cinéfilos? Ou será a obra de Clint Eastwood acessível ao grande público? Inclino-me para a segunda hipótese,Itálico e acredito que este filme se torne um clássico para todas as épocas, ao estilo de Casablanca ou de As Pontes de Madison County. A surpresa agradável confirma uma ideia antiga: se for suficientemente divulgado, se estrear em salas suficientes, um bom filme será sempre visto por muita gente. O Segredo de um Cuscuz, outro grande filme popular, poderia ter sido também um exemplo, caso tivesse estreado em mais salas - ainda assim, manteve-se em cartaz durante semanas a fio. E Aquele Querido Mês de Agosto é mais um caso: salvo erro, foi visto por quarenta mil espectadores, e não sei se chegou a estar em meia-dúzia de salas. Como teria sido, se tivesse estado acessível a todos, como acontece com a obra de Eastwood.

24/03/09

Seixos

Embora nos Céus Deus insista
E designe a lei do tempo,
A pintada e a candeliça sabem
Que os ventos sopram como lhes aprouver
Na tempestade ou na tormenta.

Herman Melville, Seixos (I), em Poemas, ed. Assírio & Alvim, trad. Mário Avelar


22/03/09

Uma frase, apenas

O Manuel A. Domingos, um excelente poeta, passou-me uma corrente a que não posso escapar, principalmente porque não quero, mas também porque sim. Não gosto da frase: "aquelas pequenas gotas de alma que ficam connosco, mesmo quando nos esquecemos delas". Mas a ideia agrada-me. Então, o que temos? O poeta a que mais regresso, por várias razões, entre elas a mais cruel: a sua perfeição inatingível. Luís Miguel Nava:

Crawl

Às vezes, entranhando-me num espelho, consigo dar nele duas ou três braçadas sucessivas.

Não passo a ninguém esta corrente, porque quem se preocupa com assuntos de "alma" já tem muito em mãos para se ocupar.


21/03/09

Gran Torino


Manoel de Oliveira será dos poucos realizadores velhos (não é preciso ter medo da palavra) que não dedicaram grande parte da sua obra mais recente ao crepúsculo da vida - talvez a excepção sejam Vou para Casa e Belle Toujours, mas ainda assim sem perder a sua característica ironia que acaba por desarmar muita da artilharia existencial que o tema pressupõe.

O outro grande realizador no activo é, já se sabe, Clint Eastwood. E este não se tem recusado ao papel que parece estar reservado a qualquer cineasta, a partir de uma determinada fase - uma certa cedência ao sentimentalismo, à meditação existencial, preparar o caminho para o esquecimento. Apesar destas evidências, quando deparamos com Eastwood no caixão - mas não vemos, não existe um grande plano - sentimos o frio do golpe no corpo todo. Ele está ali, depois do sacrifício - os braços abertos do plano culminante não deixam de ser crísticos -, e sabemos que a realidade não termina depois do genérico. Gran Torino transcende a forma, o espaço fílmico; é uma poderosa e comovida reflexão sobre uma vida no cinema: no corpo de Walt Kowalski encontramos todos os Eastwoods anteriores; e isto inclui a persona Eastwood, aquilo que conhecemos dele, a personagem real que nos habituámos a admirar (no meu caso, desde Dirty Harry).

E o genérico final, cuja resplandecência e significado são de uma intensidade estarrecedora, esclarece o enigma, estabelece uma ponte entre o filme que termina e a vida onde ele se inscreve. Repetindo Vasco Câmara (e a frase vai para o cabeçalho do blogue por tempo indeterminado, por sugestão involuntária de Ricardo Gross), vou espalhar ao vento: Gran Torino é uma obra-prima. Derrotou-me e eu estou feliz por isso.

15/03/09

Eagles



of Death Metal.


Alternar a corrente

But because solitude dwells proximally and for the most part in the deficient or at least Indifferent modes (in the indifference of passing one another by), the kind of knowing-oneself which is essential and closest, demands that one become acquainted with oneself.

A quinta frase completa de Being and Time, de Martin Heidegger (ed. Blackwell, 2000), mas em vez de ter pegado neste poderia ter procurado a quinta frase do outro livro que deveria estar a ler, a biografia do Tom Cruise que o Pedro Mexia aconselhou na última Ler ou aquele da semana para mudar a vida, que para ser livro basta ter páginas e coisas lá escritas, e que a filosofia sirva para auto-ajuda não é de modo algum um pormenor despiciendo, e como de qualquer maneira as correntes são para serem prosseguidas, a minha resposta ao desafio do Pedro Vieira foi dada. Ah, a frase tem uma nota de rodapé indexada, e se receber mais de 10 mails a pedir que a publique, assim o farei, e isso será um ganho evidente em entendimento da mesma em geral, e da vida em particular. Quanto a continuações, ainda estou à espera que o Rogério Casanova continue uma corrente que lhe passei (como uma doença) há mais que muito tempo, portanto cá vai outra para ele não continuar. O Lourenço terá já respondido a isto? O Pedro Duarte Bento também, e o Ouriquense, que se tem dedicado a trair o espírito do blogue. E gostava de saber o que José Saramago anda a ler agora; pode ser?

[Sérgio Lavos]

03/03/09

O estado das coisas

Migrei do blogue para o twitter, mas depressa me cansei; apenas a necessidade exige perseverança e força de carácter. Nada existe de útil nesta actividade que explique o facto de nela insistir. Por vezes penso que será uma questão de movimento: o mesmo que neste momento impele as frases que escrevo, uma coisa leva a outra, e por aí fora. Esta inutilidade facilmente se pode transformar num vício; mas quase sempre se torna cansativa. Não sabemos viver da inutilidade como não poderíamos viver do vício; o meio termo é achar que o movimento faz alguma diferença no estado das coisas. 
A conversa improfícua serve sobretudo para me lembrar que este blogue começou há 3 anos. Parece que a blogosfera se tornou menos importante do que era, um antro demoníaco de maldade e corrupção, uma razão mais para achar que o país não tem conserto. As razões dos outros apenas ajudam a perceber as suas próprias psicoses e manias; nada dizem porque o movimento continua, e não sabemos onde pára. Nenhum sinal de pontuação determina o tempo.

[Sérgio Lavos]