31/08/08

Paisagens

Chegará um tempo em que nenhum pedaço de terra e mato estará disponível para nos evadirmos. Ou então nenhum tempo chegará, porque desapareceremos entretanto.
Mais do que saber quando se extinguirá o planeta, interessa-me saber quantas gerações poderão ainda viver como eu vivo. E se quero fazer algum esforço para prolongar esse número.
O último dia de verão (é sempre em Agosto) passado a registar o desaparecimento da natureza. Em três anos, desde que me mudei, foram construídas pelo menos mais três urbanizações num raio de um quilómetro. Das traseiras do meu apartamento, eu podia ver uma encosta coberta de erva brava, e a meio caminho uma triste oliveira, por vezes assombrada por um cão vadio. Agora, a oliveira resiste, mas uma fileira de aberrações castanhas e amarelas encima a encosta, espreitando sobre os telhados do meu bairro. Os montes em redor polvilham-se de betão, postes e fios eléctricos, estradas rasgando a paisagem.
Não sei o que é pior: acreditar que existe um PDM que permite este tipo de construção ou aceitar que ninguém, na realidade, respeita o PDM existente. E, no fim de contas, também eu me mudei para um prédio que veio arruinar a paisagem e a paciência de quem ainda tinha vista para as árvores.
Do alto dos montes, onde subi, a humanidade alastra como: uma vaga de vitalidade, se acreditarmos em Walt Whitman; um cancro incurável, se cedermos ao apelo dos pessimistas.
Escolha quem quiser; eu limito-me a assistir na primeira fila.

[Sérgio Lavos]

30/08/08

O meu querido mês de Agosto

[Sérgio Lavos]

Aquele Querido Mês de Agosto

Entre o elogio geral da crítica e o meu desejo de encontrar afinidades electivas, seria fácil decidir-me a ir ver Aquele Querido Mês de Agosto; o melhor do filme é ter conseguido ultrapassar expectativas e preconceitos.
Obra sobre um país que desaparece ou metacinema? Olhar antropológico ou autoreflexivo? Registo paternalista ou irónico? As escolhas são inúmeras. A decisão forçada de Miguel Gomes levou a que a obra seja um complexo labirinto de múltiplas leituras; não é apenas um filme, e não é um simples documentário. Um ensaio sobre o endémico mal do cinema português, a falta de dinheiro; um ensaio cínico e sem vontade de mudar seja o que for. Sobretudo um objecto que faz das suas fraquezas força, conseguindo sobreviver a um planeamento sabotado pelo escasso orçamento e à distância temporal entre os dois períodos de filmagem. Sem dinheiro, Miguel Gomes decide contratar pessoas (leia-se entre aspas irónicas) para fazerem de actores, para fazerem de personagens; e as duas temporadas de verão servem de marco entre documentário e ficção - apesar da descontinuidade temporal se esbater em virtude do ritmo da montagem, que no fundo acaba por ser a maior força do filme, o seu golpe de asa.
A história que as imagens da primeira parte contam - a ficção que a realidade produz - transforma-se em eco de realidade na segunda parte, ficção pura habitada pelos fantasmas do documentário; e a ironia do realizador vinca firmemente a natureza livre do filme. Por isso, um objecto que à partida tem como tema algo nos antípodas do gosto dos seus potenciais espectadores - a música pimba -, acaba por ser experimental nos seus propósitos. Ninguém admitiria que um musical pimba (no fundo, o que o filme é) pudesse ser também um ensaio certeiro sobre a arte de fazer cinema - a pós-modernidade não é um assunto encerrado; não mais sairemos de lá.

[Sérgio Lavos]

28/08/08

Diferenças

Hoje o dia acordou quente; o verão chegou tarde demais.
Não há gravidade que possa submeter o tempo à necessidade humana. Parece que tudo muda, e a escala que o mundo tem na infância não foge à regra. A mesma natureza, agora, serei diferente enquanto registo as alterações mínimas, as semelhanças.
Duas linhas paralelas que nunca se encontram - o passado e o olhar que o fabrica. Agora, observo o passado, e a luz que sobre ele incide inflama as sombras, modificando as arestas que o compõem.
Hoje o dia acordou quente; uma semana passou durante um verão, nenhuma reconciliação será possível. Os lugares por onde me passeio não são a terra que conheci - eu sou diferente.

[Sérgio Lavos]

27/08/08

Um pequeno apontamento

Dá-se o caso de me encher mais as medidas um conto pouco extenso de Doris Lessing do que grande parte dos romances que li ao longo da minha vida. Este facto, a que nem eu nem quem me lê atribui qualquer importância, acaba por ser na verdade relevante. Porque não escrevo já à mão e não vivo no século dezanove, sinto-me obrigado a refutar algo que escrevi em tempos no blogue, a saber: que o prémio Nobel recebido pela escritora seria toldado pela politiquice da Academia. Não interessa, na realidade. O que importa neste momento é afirmar, sem redundâncias nem rodriguinhos, que Lessing é uma grande escritora, apesar das modernices da ficção mais recente.
Pudesse eu escrever ainda numa folha de papel, e comporia uma elegia à simplicidade certeira e elegante de Lessing, no fim de contas o único modo de chegar ao coração da natureza humana, que acaba por não ser chamada à colação suficientes vezes. Isso: natureza humana. Os pormenores que se destacam do quadro extenuado que é a vida. E tal, e tal. E tenho de ir ver o Dexter.
Enquanto não, visitem o fantástico Ouriquense.

[Sérgio Lavos]

Árvores


[Sérgio Lavos]

25/08/08

Revista Malagueta

Um novo número da Malagueta, com um texto meu:

(...)E assim, chegamos à idade plena da Web 2.0. Aqui estamos, publicando fragmentos diarísticos, pedaços de criatividade mais ou menos sofrível, pensamentos para o mundo ler – mesmo que não queira. A internet, esse círculo dantesco de despojados do conhecimento real, deixou que blogues, fotoblogues, fóruns, tomassem conta da vida de muitos que deveriam confiar os seus escritos ao morno conforto da gaveta. Estamos no século XXI, e podemos usufruir, quase em tempo real, das confissões de milhões de aspirantes a Gide e a Kafka. George Orwell, blogger involuntário, daria a sua permissão para o serviço que estão a prestar aos seus diários? A luta é constante; quem publica na blogosfera pretende o reconhecimento da importância desta actividade, e converter escritores mortos aos blogues não é um pecado que não possa ser perdoado.(...)

Continua aqui.

[Sérgio Lavos]

16/08/08

A Leonard Cohen afterworld



Há momentos que definem a vida de uma pessoa; outros que são tão importantes que definem uma geração. O facto de em 1993 eu não ter ido ao concerto dos Nirvana em Cascais pode bem ter-me tornado alguém que não seria se tivesse ido. Alguns meses depois, Kurt Cobain tinha aquele infeliz incidente com uma arma de caça, e admito que a falta de seriedade com que encaro estes assuntos é uma consequência grave de ter faltado à missa nesse dia (isso e o facto de não confirmar o dia certo do concerto).

Quando recebi a notícia, reagi com naturalidade, como se fosse a morte de um conhecido com uma doença incurável. O problema é este: eu reagi como se conhecesse intimamente alguém que nunca cheguei sequer a ver.

A minha geração é aquela que se dividiu entre os que gostavam de uma banda cuja melhor música é sobre um miúdo que se suicida num liceu (Jeremy, Pearl Jam) e os que preferiam ouvir hinos indulgentemente violentos à amaldiçoada adolescência (Smells Like Teen Spirit, Nirvana). As tribos minoritárias (alternativos, metaleiros) são um pormenor da história; os primeiros tornaram-se melómanos snobes que passam horas a escutar vinis de pessoal que já morreu há mais duas décadas, e apesar de isso, por si só, não ser necessariamente mau, a essência da música pop nunca poderá passar por esta atitude; e os segundos continuam, na melhor das hipóteses, metaleiros, mas agora com crianças e créditos à habitação à perna: o teenage angst transformou-se em middle class crisis.

Mas a verdade é que os Pearl Jam continuam a ser chatos, e agora são chatos politicamente empenhados (a pior espécie) e os Radiohead tornaram-se a banda preferida de uma geração de entediados em busca de um futuro melhor. E os Nirvana continuam a ser, pasme-se, muito bons; os Doors desta época, para novas vagas de adolescentes rebeldes ouvirem. Muitos anos depois, a bateria perfeita de David Grohl, o baixo pujante de Krist Novoselic e a guitarra enraivecida de Cobain deixaram de induzir a um imberbe exorcismo onanista e tornaram-se o que sempre foram: excelentes.

Assim é o tempo.

[Sérgio Lavos]