29/12/06

IVG (3)

Uma semana fora dá para perceber a verdadeira dimensão da blogoesfera: quase nula. Enquanto os telejornais desfilavam diariamente notícias oscilando entre o irrisório e o sensacionalista, os blogues mais políticos divertiam-se em polémicas artificiais só para manter o ritmo e os leitores diários.
Um exemplo: a campanha em andamento para o referendo à despenalização da IVG. Não é assunto do quotidiano, as pessoas não se preocupam, desconfio mesmo que, se o resultado pudesse ser decidido em consequência da inacção cívica, o aborto há muito que teria sido despenalizado. O referendo de 1998 foi ganho pelo campo que mais lutou pela sua causa. De resto, compreende-se que haja pouca vontade de lutar por um assunto que, quase sempre, não chega a ser problema para a maior parte dos cidadãos. Nos dois lados, o combate torna-se, portanto, ideológico. O empenho mostrado é quase sempre inversamente proporcional ao volume de reflexão que está por detrás dessa energia.
Mas eu julgava que nos blogues seria diferente. Achava que o espaço liberto de que usufruimos seria fundamental para o esclarecimento lúcido de todas as questões em torno do assunto. Engano meu, claro. A blogoesfera, na sua confessa pessoalidade, acaba por receber de braços abertos aquela máxima que, numa discussão, defende o sacrifício da verdade em prejuízo do estilo. Ora, por muito que se aprecie os dotes de um bom polemista, não há paciência para os engraçadinhos e os demagogos num debate que devia continuar sério. O campo do "não" agradece a fraqueza, até porque o moralismo não perde uma oportunidade para mostrar os seus verdadeiros dentes.
Não espero novidades da parte de nenhum dos movimentos que prosseguem a sua campanha em outdoors e acções mediáticas - e acaba por ser penoso ver o tema ser tratado como uma vulgar campanha eleitoral. Mas isto são antigas histórias. O ponto principal, averiguar da utilidade de referendar uma questão de consciência individual, foi distorcido em tempo devido pelo moralismo preconceituoso dos movimentos do "não". O que resta é o que, diariamente, vemos e lemos. E não é muito.

[Sérgio Lavos]

Michel Houellebecq

Ler um livro de Houellebecq (e Extensão do Domínio da Luta é, provavelmente, o melhor) não é uma experiência limite. Mas a desolação e a descrença que transpiram das suas personagens tornam muito difícil qualquer tipo de antipatia em relação ao escritor. O mundo de Houellebecq é um mundo sem esperança, sem fé nele próprio, sem qualquer tipo de ilusão ou vontade de acreditar num futuro que seja ligeiramente melhor que o presente. Qualquer semelhança com a realidade apenas pode fazer sentido - nesta quadra natalícia, decisivamente. A misantropia de Houellebecq, entre as tendências autobiográficas e um niilismo que encontra em todos a depressão que ele transporta, raramente chega a ser irónica. É cruel e depreza a banalidade da vida, da classe média, dos valores de uma sociedade decadente. O inferno são os outros, em absoluto, e o indivíduo que perde qualquer traço de personalidade ou independência de espírito perante a avalanche medíocre do resto da sociedade. O leitor chega a sentir pena dos pobres desgraçados que Houellebecq transforma em anti-heróis dos seus romances. Apesar dos defeitos, das acusações. Da polémica.
Não será um acaso o facto de Houellebecq ser francês, órfão de uma literatura que perdeu o viço há muito. Lemos um romance escrito por um inglês ou norte-americano e admiramos a vitalidade permanente da escrita e a força das personagens, uma certeza definitiva que tem que ver com a dinâmica de domínio da cultura anglo-saxónica no mundo globalizado de agora. A França, potência em perda, produz uma cultura de acordo com a decadência progressiva a que se vai habituando. Que o escritor francês contemporâneo mais conhecido fora do país seja alguém como Houellebecq não é apenas um sintoma - é toda uma patologia. A doença dos tempos modernos.

[Sérgio Lavos]

Ponto da situação

"Entretanto resta-lhe algum tempo livre. O que fazer? Como aplicá-lo e em quê? Consagrar-se ao desígnio de outrem? Mas, no fundo, os outros não lhe interessam. Ouvir música? Seria uma solução, mas com o passar dos anos temos de convir que a música estimula cada vez menos. Os biscates, num sentido mais lato, podem representar uma alternativa. Porém, nem a boa vontade pode impedir o retorno cada vez mais frequente destes momentos onde a solidão absoluta, a sensação de vacuidade universal e o pressentimento de que a existência se assemelha a um doloroso e definitivo desastre premeditam o mergulho num estado de verdadeiro sofrimento."

Michel Houellebecq, in Extensão do Domínio da Luta (ed. Quasi)
[Sérgio Lavos]

22/12/06

That was the worst Christmas ever

Sufjan Stevens tem um cd de Natal com algumas versões e também algumas canções originais escritas exclusivamente para esta época do ano que, diz ele num dos textos que acompanha o conjunto de cds, apesar de odiar aprendeu a gostar.
Aqui fica a música gravada no concerto dado em Dublin em 01 de Novembro de 2006 onde Sufjan se fez acompanhar do Pai Natal.

That was the worst christmas ever. Obrigado Armando.

[Susana Viegas]

19/12/06

Videografias 5


Após uma regular actividade com diversos músicos ao longo da década de 80 e parte da década de 90, David Fincher (n.1962) fez uma pausa para se dedicar às longas metragens tendo com Se7en conquistado a fama e surpreendido o mundo. Assim, encontramos a sua marca típica em Alien 3 (1992) para se seguirem êxitos cinematográficos com qualidade como Se7en (1995), The Game (1997), Fight Club (1999) e Panic Room (2002). A nível cinematográfico, Fincher consegue o prodígio de se manter fiel e dedicado a um tema muito próprio: a perigosidade do Outro. Na verdade, o Outro, ou o Si próprio como um Outro, é sempre um elemento perverso, perigoso, entrando em jogatinas com um bem existencial sem repetição, a existência de cada um. E, será em parte devido a este confronto que preferíamos evitar, que os filmes de Fincher são tão perturbadores porque colocam o niilista espectador em que nos tornámos perante uma moralidade litúrgica que nos parecia ser tão distante e ausente.
[Como se não bastasse, David Fincher consegue ainda fazer anúncios comerciais como ninguém (ver YouTube).]
Com os Nine Inch Nails (Coliseus em Fevereiro) e este video Only, David Fincher entra numa lógica artificial juntando a animação por computador com um brinquedo infantil onde surge o rosto de Trent Reznor, filmando ondas sonoras repercutindo na matéria envolvente, dando densidade a uma música com um forte carácter industrial. Os únicos elementos biológicos são as maçãs verdes e a mão que dita o play.

[Susana Viegas]

16/12/06

Viajar

Longas viagens de comboio, ao contrário do que me dizem, não são necessariamente um mal. O corpo habitua-se, e dá para ir vendo a vida compactada em páginas, ou, sem metáfora à mistura, ler livros e jornais sem culpa e com tempo em abundância.
A entrevista de Alexandra Lucas Coelho a Luandino Vieira tem o mesmo ritmo de uma viagem de comboio - ainda assim, dura menos do que esperamos, do que desejamos. Surpreendido pela reclusão interrompida ou pela fama desprovida de razão de que o escritor gozava - imagino que haverá alguma cedência à vaidade nesta conversa com o Público. E sei que o prémio foi recusado - parece-me que por razões práticas, sem mais.
Enquanto as páginas dos suplementos de literatura dos jornais forem ocupadas com peças como a de hoje (e o gozo da crónica de Mário Santos, claro - por favor, não o publiquem. Ele não precisa de concorrer com objectos que nada têm que ver com literatura. Deixem-no com a sua biblioteca de papel semanalmente alimentada.) Escrevia (não dizia) que enquanto as páginas dos suplementos não forem tomadas de assalto pelas brigadas dos clones de livros que surgem debaixo de cada pedra em que se tropeça, não estamos completamente perdidos.
Como poderá alguém não defender a protecção da criação marginal? Se é aí que reside a força de qualquer arte, da literatura à música, passando pela pintura ou o cinema. Quem cria tendo em mente um gosto abrangente e universal, corre sempre o risco de produzir repetição, nunca gerar diferença.
Luandino Vieira (conversa política à parte, mas raramente os escritores conseguem entender o mundo que os rodeia) fala como escreve, caminha como fala - e escrever é quase sempre um exercício de redundância e fuga, aproximação e reencontro, um passeio pelos campos que nos são familiares.
O comboio chega à estação, é noite perdendo-se na noite. Fecho o jornal e saio.

[Sérgio Lavos]

14/12/06

Videografias 4


Do universo de Wong Kar-Wai à tradição oriental do cinema de artes marciais a distância é curta. A música ajuda; Dj Shadow citando James Bond, cortando e colando uma voz de R'n'B a uma batida hip-hop saturada. Os ambientes cinematográficos que a música evoca têm a sua plena justificação nas imagens criadas pelo realizador de Hong-Kong. O ultra-romantismo pintado a cores saturadas, personagens que vivem entre a sombra e a mancha difusa dos néons, na margem que separa o Ocidente do Oriente. Wong Kar-Wai talvez tenha atingido a perfeição quando serenou a inquietação urbana que se tornara marca distinta e conferiu uma densidade clássica aos seus filmes - primeiro com In The Mood for Love e depois em 2046. Mas foram as suas obras dos anos 90, Anjos Caídos e Chungking Express, que se tornaram ícones de um determinado Oriente que, com o regresso das colónias britânica e portuguesa ao seio da China, se questionava sobre a sua identidade perdida. O cinema contemporâneo, arte transversal e símbolo da globalização, tornou a decadência ritual de passagem entre a juventude e a idade adulta. A perda e o desencanto, redimensionados pela paisagem urbana entre a ruína e o high-tech, são os novos deuses desta juventude perdida, captados por Wong Kar-Wai na sua perfeição caótica. Do minimalismo lacunar à velocidade saturada. Six Days, de Dj Shadow. Em imagens.

[Sérgio Lavos]

Dobra (2)

[foto: Sérgio Lavos]

Dobra

[foto: Sérgio Lavos]

Eu vi a luz

Não se deveria estar a celebrar a nomeação de Maria José Morgado para dirigir a investigação no processo "Apito Dourado". Não se deveria, mas fazêmo-lo. Uma velha mania nossa, esperar por salvadores surgindo da bruma. No horizonte vazio da Justiça portuguesa, não se vislumbrava mais nenhum nome que pudesse assegurar a credibilidade necessária para o nosso cansado coração, farto de magistrados candidatos a lugares no Conselho de Justiça da FPF, de escândalos que se arrastam pelos tribunais e pelas mãos de investigadores e procuradores em busca de fama e protagonismo.
Vamos lá, agora é só fazer fila para agradecer a dona Carolina. Seis milhões de portugueses (os benfiquistas) regozijam com o desafio e o saudável hábito de lavar ao ar livre a sujidade que carregou durante seis anos - e ainda têm como bónus extra um vislumbre da intimidade partilhada com Jorge Nuno.
A última semana fez-me acreditar piamente na deriva dos continentes. Em poucos dias, Portugal conseguiu galgar os milhares de quilómetros que o separam das repúblicas sul-americanas, deixando para trás a cómoda civilização europeia. E os portugueses brindam ao facto, dirigindo-se a correr em direcção às livrarias, entre a euforia da pertença e a celebração da vingançazinha, entre o delírio da devassa e a alucinação da descoberta da verdadeira alma de um povo. Nunca uma livraria se pareceu tanto com uma capelinha dos devotos - magotes de basbaques fazem romarias para comprar o livrinho de que toda a gente fala.
Mas tudo passa. Semanas se perderão sobre semanas, Carolina vai ser esquecida, Jorge Nuno continuará o seu papado, imune ao fervor religioso dos milhões que esperam a justa retribuição depois de tantos anos de suspeita - e de derrotas. Irá ser acusado, condenado? O clube que dirige irá ser castigado pelos seus despautérios? Não brinquem. O futebol é uma outra galáxia, com as suas próprias regras de conduta - ou talvez não; talvez se pareça demasiado com o resto do país. O problema não é dos dirigentes desportivos. É do português comum, ao dar mais importância ao futebol do que à política ou ao estado da nação e das instituições que a governam.
O futebol é mau. O país é péssimo. Coragem, um pouco mais de esforço para bater no fundo!

[Sérgio Lavos]

13/12/06

Videografias 3


Hal Hartley transporta para os videos que realizou todas as características icónicas dos seus filmes: o vazio circundante das personagens, a crueza inexpressiva de quem se aborrece.Ou de quem quer mudar de vida. É o herdeiro directo da nouvelle vague.
Com Beth Orton, Stolen Car (1999), foi simples e vazio, demasiado ingénuo na falta de cenário, adereços, cor, movimento. O minimalismo independente americano foi levado a um extremo do desinteresse estético não ajudando a beleza melódica de Beth Orton.
Já com os Yo la Tengo a relação foi, desde o início diferente, porque nos filmes de Hartley a música é tão importante como as imagens. Os Yo la Tengo participaram com diversas músicas para a banda sonora dos filmes Amateur (obra-prima de Hal Hartley), Simple Man e ainda para The Book of Life (Martin Donovan e P.J.Harvey). Com o video para From a Motel 6 (1994), Hartley consegue-se ruborizar e, com algum sangue a correr nas veias, realiza um brilhante video, em harmonia com o som indie das guitarras.

[Susana Viegas]

12/12/06

A dona Carolina

Não vale a pena reclamar: o negócio dos livros raras vezes tem que ver com livros. Quem se surpreende agora com a D. Quixote e a decisão de editar o vomitório da senhora do Calor da Noite não conhece a regra máxima de qualquer empresa: o lucro, a qualquer custo. E o livro, fulminante, vende que se farta - já voou a primeira edição. Quem o compra? Não se julge que é apenas o médio leitor da Bola. Eu vi muita gente respeitável com ar mais que comprometido perguntando pelo objecto em questão, e quase que jurava que não o queriam para fins sanitários. A alma portuguesa é assim, ao mínimo desvario cobre-se de vergonha.

[Sérgio Lavos]

Onésimo

No Miniscente, um texto de um dos prosadores mais elegantes da língua portuguesa de agora - Onésimo Teotónio Almeida, que conheço dos tempos vivos da agora comatosa revista Ler. Dêem-lhe um pouco do vosso tempo, vá lá, que a blogosfera não é só textos com meia-dúzia de linhas.

[Sérgio Lavos]

11/12/06

Na morte de um caudilho

Na morte de Pinochet, os mesmo velhos hábitos de sempre. Alguns dias depois da esmagadora (e democrática) vitória do folião Chavez na próxima Venezuela - e ninguém poderá negar a força das ironias da História. Passando os olhos pelos blogues de direita, nada muda. A lamúria não é abertamente confessada, mas quase que se adivinha uma lágrimazinha no canto do olho em alguns defensores das reformas económicas que foram levadas a cabo pelo general chileno - e da limpeza apriorística do sujo comunismo do proto-ditador Allende. Há números e números, há ditadores e ditadores, e há esse saudável hábito de desculparmos os excessos dos que estão com o coração do lado certo - seja direito ou esquerdo - com as atrocidades dos outros. Pinochet matou três mil e encarcerou incontáveis milhares? Castro também o fez, Chavez faria-o se pudesse. E Pol Pot. E Kim Il-Sung. E Estaline. A esquerda riposta do mesmo modo. Castro persegue os opositores políticos? E a ditadura de Fulgencio Batista, era melhor? E Guantánamo? E a miséria do Capital?
Sejamos claros: provavelmente, André, irá suceder o previsto. Quando Castro morrer, muitas vozes que celebraram o desaparecimento de Pinochet irão calar-se ou lamentar o fim da utopia cubana. Sabemos disso. E será verdade que em Portugal isso é inevitável. Somos herdeiros de uma revolução de esquerda e de uma geração que se alimentou de todas as utopias revolucionárias falhadas. Mas um parágrafo, um parágrafo que seja, escrito em forma de elegia acanhada ao ditador chileno, basta-me para recusar comparações entre massacres e crimes. O sangue de uns não limpa o sangue de outros. A conversa fiada não me consegue comover - como não me comovem as lamúrias da praxe. De um lado ou de outro.

Adenda: O texto do Rui diz tudo.

[Sérgio Lavos]

10/12/06

Relatório médico

Recupero o bom-humor, mas não a vontade de postar. Desde que começou a chover, todos os domingos uma constipação de dois dias me paga uma visita - é uma tradução literal errada, eu sei, mas é também uma expressão eficaz. Pensei num top com as 5 melhores sequências cinematográficas com comida à mistura, depois restringi para o cinema americano, cheguei a pouco mais de meia-dúzia e ainda não tomei a decisão final. De seguida irei tentar minimizar os estragos que um berbequim nas mãos de um gajo duplamente canhoto pode fazer - ah, deveres domésticos, a quanto obrigam! Este post auto-destruir-se-à dentro de, aproxidamente, três horas. (ou não)

[Sérgio Lavos]

06/12/06

Teoria dos conjuntos

O modo mais correcto de recriar o conhecimento é torná-lo vazio de substância. Imagine-se: um conjunto de frases, que é um conjunto de palavras, que é um conjunto de sons, que é um conjunto de ondas, que é um conjunto de nada.

[Sérgio Lavos]

Julgar

Da série ofícios infernais: recusar sempre o julgamento da acção dos outros; sempre admitir o erro, aceitar a diferença, relativizar a importância de uma opinião, conviver em plena tolerância. Receber de braços abertos o destino reservado: o falhanço.

[Sérgio Lavos]

Apontar

Da série ofícios por cumprir: catalogador de estados de espírito; apontar burocraticamente todas as variações de um dia; não reconhecer em nenhuma linha escrita a condição maldita do ofício.

[Sérgio Lavos]

Pássaros

Da série ofícios nunca cumpridos: fotografar o voo dos pássaros; imagens do céu e sombras escapando ao olho; movimento fixo.

[Sérgio Lavos]

05/12/06

Auto-retrato ficcionado

Foto: Sérgio Lavos

Está patente no CAV de Coimbra a exposição Condições de Possibilidade, conjunto de 79 obras de Jorge Molder marcado pelo grande formato, pela série The Secret Agent (na foto).

Quando, a um canto do Pátio da Inquisição localizamos o CAV - Centro De Artes Visuais de Coimbra- a primeira coisa em que reparamos é no abandono a que foi deixada a instalação de Pedro Cabrita Reis. Às seis da tarde já é de noite e, por isso, mais se evidencia a escuridão desta instalação, criada e recortada pela iluminação. As luzes apagadas, a desolação total, continuação do isolamento que se sente no Pátio. Até custa a acreditar que as movimentadas Rua da Sofia e Visconde da Luz ficam ali tão perto.

Quanto à exposição, estava deserta. Éramos os únicos, além das funcionárias, apesar de ser Domingo, apesar de ser gratuito. O mote da exposição remonta intencionalmente a Immanuel Kant e às condições de possibilidade do conhecimento humano. Por isso, encontramos auto-retratos, identidade e desfiguração, taxinomias que lembram Goethe, sequências de imagens fixas em movimento, aliens, órgãos ampliados e autonomizados como em Buñuel. Inclui ainda um vídeo onde o artista reflecte sobre as relações entre espaço interior/exterior, opacidade/esbatimento, num encontro entre o espaço da exposição e a obra de arte.
Até 28 de Janeiro de 2007.

[Susana Viegas]

Deuses

Um desastroso professor de matemática, no 8ºano, cortou pela raiz o sonho que tinha de um dia me tornar astrónomo. Durante muitos anos, pensei agradecer-lhe o feito. Mudei. Perante o rigor dos números, da fabulosa geometria dos céus, qualquer palavra corre o risco de perder a sua força. Sacrifico a minha vida ao altar do deus mais falível. E nem a essa fraca divindade consigo agradar de forma plena.

[Sérgio Lavos]

Três lados

Num triângulo rectângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos. Colocado no vértice oposto à hipotenusa, tenho os dois catetos prolongando-se até que o lado maior os una. Devia haver uma lição a retirar desta evidência. Mas um triângulo não se apoia em nenhum dos lados - ao contrário do que faz crer a imagem mental (e pictórica) que conhecemos. Antes existe livre num espaço que não existe.

[Sérgio Lavos]

Um rumo

Olhar para trás e observar com a atenção de um geógrafo a linha curva que deixámos traçada na estrada. Um ponto muito distante, que fixámos em tempos como o início da linha. O desvio de noventa graus para lado nenhum. A insistência em metáforas ineficazes, em métodos de produção ultrapassados. Deve ser esta a intenção de um deus ausente.

[Sérgio Lavos]

Podia

Pontuação análoga. Fraseado titubeante. Argumentação debilitada. Pertinência duvidosa. Leitura a conta-gotas. Tudo isto podia ser uma doença do corpo.

[Sérgio Lavos]

01/12/06

Silly seasons

Não conseguimos fugir. Podemos tentar, reclamar, negar com todas as letras, recusar e armar em snobe, que acabamos por cair todos os anos no mesmo erro: fazer compras em centros comerciais em plena época natalícia. Sei que alguns, de entre vós, são mais resistentes do que eu (ou, já agora toda a gente que conheço); mas eu também sei, e ainda a 25 dias de distância, que irei acabar por percorrer desconsolado os corredores tristes, barulhentos e suados de um qualquer shopping apinhado de véspera de Natal.
Santo consumismo! Abençoada mãe de todas as coisas. Multiplicar os presentes oferecidos como se fossem os pães das bodas de Canã, não esquecer ninguém, desde o parente próximo despachado com um embrulho de última hora até a um desconhecido que passa na rua a quem entregamos, acompanhado de uns sentidos votos de feliz Natal, o romance de Lobo Antunes que alguém nos ofereceu o ano passado.
Não, confesso, isto é tudo mentira. Desde a mais tenra infância que fui educado a ignorar o espírito do Natal e por isso somo esquecimentos a amizades nunca devidamente cultivadas. Como passo por católico (não faço eu parte dos 98%?), nem sequer posso usar a desculpa da religião. É, parece que foi há quase dois mil e seis anos que Jesus nasceu. Mas o facto nada tem que ver com o Natal. Agradeço à Coca-Cola, publicamente, o facto de ter tornado a sagrada manjedoura assunto apenas para lugares atrasados de países do terceiro mundo.
Houve um tempo em que havia o Menino Jesus que deixava um presente no sapato. A noite era passada quase em claro, e de manhã corríamos para a lareira desfazer embrulhos e a derradeira esperança de recebermos mais do que uma daquelas meias com raquetes ou um par de cuecas oferecido por uma tia afastada. Agora parece que as crianças esperam a meia-noite na ânsia da prometida consola ou do telemóvel encomendado pelos progenitores ao Pai-Natal.
Sem Deus nem Capital, que divindade me restará celebrar a cada Natal que passa? A resignação e o cansaço. Agasalho-me na doce manta do cinismo e pinto-me com as suaves cores da hipocrisia; sou assoberbado pelo Natal e festejo-o mecanicamente, disfarçando a amargura com sorrisos de vendedor cansado. Visito as lojas e ouço a música dos shoppings, compro sem escolher apenas para cumprir calendário. Admito apenas a alegria das crianças, por ser ainda ingénua - irei, claro, oferecer com gosto um presente ao meu filho. E canso-me, claro. Canso-me. Mas a minha vida não é nada disto.

[Sérgio Lavos]