26/08/13

Regresso

A cada momento, a perseguição, a ameaça. Acossado pelo medo, sei que apenas o poderei atenuar ou esquecer transitoriamente. Não o poderei expurgar, retirar, porque não o consigo compreender. Sinto-o, reconheço-o quando se insinua, mas não sei por que razão me visita. Ou sei, mas preferiria não o saber. O medo que me modula é a contrapartida da razão. Penso, sei e julgo conhecer-me, e por isso perco-me. Esperar o esquecimento é a única previsão que me embala. Seja o sono, as tarefas quotidianas, substâncias mais ou menos lícitas, como o conforto da vida doméstica a que alguns, com razão ou sem ela, chamam amor. Existi melhor enquanto vivi no passado, por muitas recriminações e arrependimentos que ele me trouxesse. Agora que vivo no futuro, no intervalo da dor amenizo a espera desejando esse regresso. O presente, esse, vai passando.

23/08/13

Jüdishes Museum - Daniel Libeskind

O simbolismo das pedras decorre da organização do espaço, da distribuição do vazio e da matéria, ou nasce da abstração da memória e dos fundamentos culturais do indivíduo?
Quando um edifício é construído com um propósito inicial determinado, qualquer decisão do arquitecto é conduzida por esse propósito. Diferente de transportar objectos para um edifício pré-existente. O espólio do museu do Judaísmo é a carne que as pedras cobrem, o miolo a partir do qual se constrói o museu. As vidas deixam de ser vidas e passam a ser memorabilia que pertenceu em tempos a pessoas desaparecidas, mortas. O eixo do Holocausto, um corredor ascensional que corta o eixo da tranquilidade, desemboca - ou antes, é bruscamente interrompido - no vazio, uma sala que acompanha verticalmente toda a exposição, sem nada dentro, na qual apenas é visível uma fresta no alto por onde entra a luz - apenas durante o dia, dado que nenhuma fonte de luz artificial existe na sala. A verticalidade da divisão enclausura as vidas dos judeus que antes vimos. O frio da pedra cria um vácuo concentrando o tempo num espaço de três metros quadrados, um altar sacrificial de onde toda a presença divina foi sugada. Um funcionário do museu abre a porta ao visitante - um porteiro para o vazio. O longo corredor que exibe em pequenas capelas restos da vida de judeus mortos em campos de concentração é apenas a antecâmara do extermínio. Andarmos por ali ritualiza a morte, objecto de celebração da entropia. Será possível uma qualquer ética ainda humana num museu que celebra o desaparecimento?

(De um diário de uma viagem de há alguns anos.)

22/08/13

Uma fronteira

O som da morte, imagino, deverá ser semelhante ao ruído da aproximação de um comboio. Enquanto aguardo na estação aquele que me leva, penso na zona de impasse entre corpo e comboio, e sei que o primeiro perde sempre - tal evidência não se me escapa. Ainda assim brinco com a possibilidade do momento de ruptura poder suspender-se por vezes numa fronteira de indefinição. 

Liberdade

Deus fica de fora. De cada vez que mais uma tragédia é conhecida, repete-se: o mundo foi abandonado, o ser humano foi deixado ao seu livre arbítrio. É cómodo. Comodista. Confortável. O ser humano deixado ao seu livre arbítrio mata, fere, tortura, provoca sofrimento e o pior a que pode ser sujeito é um castigo terreno mais ou menos rápido e a promessa de que poderá haver um Inferno para castigar os seus pecados. Pouco, muito pouco. O livre arbítrio é o salvo conduto para a concretização dos piores instintos humanos - que nada têm que ver com a natureza animal do Homem. O contrário disto - não haver realmente determinação em tudo o que fazemos - é ainda pior; como se Deus, na sua divina crueldade, determinasse que seres matam, que seres ferem, que seres torturam. Abandonemos Deus, como ele nos abandonou em tempos. Nenhuma existência suporta um mundo que deixa os homens abandonados à sua sorte.

16/08/13

A adolescência

A adolescência – ah,
suspira quem se afasta a velocidade de cruzeiro
da idade do ouro.

Adolescência – o buraco negro do existencialista,
passagem para a superfície, em direcção à luz.
Todos os adultos que se perdem
em enredados jogos, florete em punho,
atirando ao primeiro que se mexa,
se for mulher, melhor,
lembram aquele momento
em que o sol no rosto
(o último do dia)
na praia quase vazia,
perdeu de um momento para outro a força,
e do abismo espreitou o demónio da verdade,
arreganhando os dentes,
a verdade apodrecendo logo abaixo da superfície,
o vazio sustentando a pele do mundo,
a membrana fina das ideias.

A velocidade a que uma nave se afasta
do coração da galáxia é um salto rápido no tempo,
menos que um momento.

Na praia sem luz, enquanto a noite
vai cobrindo a sombra deixada pela
vida que partiu ao pôr do sol,
acendem-se fogueiras.
A adolescência é um lugar no passado
que nunca existiu, incerto como o voo de uma ave.
Ela está ali, ouvindo o mar
subindo na memória.

Um luxo

Todo o crime terá castigo. Se não for a justiça terrena a castigar, teremos sempre a culpa nesta vida e a perdição eterna na outra. O nosso sentido ético - uma qualquer linha divergente da inteligência com que fomos abençoados - obriga-nos a carregar às costas a lembrança e a suportar o arrependimento. Não sabemos viver para o momento nem esquecer o passado que persegue. A literatura ter encontrado neste tema um filão inesgotável não parece um feito de outro mundo. O problema da culpa e do arrependimento é o mesmo de todas as mais importantes perguntas da vida: não tem solução. Havemos de pecar e de carregar a culpa do pecado. A história da Bíblia serve de aviso e é um espelho do que somos. Quem se entrega ao crime e não sente a culpa prescindiu de ser humano. Um luxo inacessível à maioria.