28/09/11

Que se lixe

Estamos a chegar a Outubro e estão cerca de trinta graus, todos os dias. O cheiro do fumo das castanhas aparece deslocado; não faz frio e a chuva é uma recordação não muito recente. Vamos culpar o aquecimento global por este excesso divino? Não, prolonguemos o prazer: enquanto der para sentir o ar quente na pele, ó júbilo! E uma esplanada com imperial e tudo. Que se lixe o fim do mundo.

27/09/11

Forever Binoche

Abro a porta

Abro a porta.
Tenho cuidado com os vidros partidos.
Olho constantemente para o mapa 
mas já não me lembro para onde queria ir.
Podia ficar aqui,
enquanto a noite respira nas janelas embaciadas.
Os móveis apagam-me os passos
em ângulos cegos
e, nessas sombras do incerto,
deixo que o cansaço me tire a peruca da paciência
assim como a noite nos tira a roupa antes de dormir.


Isolado num cantinho da boca entreaberta,
o teu sorriso
vai contribuindo para o genocídio dos camarões
que o vinho branco torna sempre menos sangrento.
Poderia, de facto, ficar aqui
enquanto desapareces, por fim, num sono sem importância.


Vou esvaziando os copos
e começo a compilar beijos,
como quem junta, à pressa, moedas caídas pelo chão:
somos todas putas, rapaz, 
com ou sem vodka.


Golgona Anghel, em Vim Porque Me Pagavam, edição Mariposa Azual.

24/09/11

Nevermind - vinte anos que passaram a correr

No dia 24 de Setembro de 1991, o álbum Nevermind sai para as lojas; no dia 11 de Setembro de 2001, dois aviões embatem nas Torres Gémeas e matam quase 3000 pessoas.
 As duas datas, sem nada que pareça aproximá-las, acabam por ser duas importantes balizas da geração a que pertenço. Em 1991 eu ainda achava que nunca chegaria à idade adulta; em 2001, eu já tinha entrado nessa idade sem me ter dado conta. Até que uma realidade tingida de ficção me desperta.
 A experiência do mundo é sempre individual, solitária; mas os dois acontecimentos certamente marcaram milhões de filhos da bonança dos oitenta. Curiosamente, somos nós, os da Geração Rasca, que agora mais sofremos as agruras de um capitalismo precário.
 E os Nirvana, o que têm eles a ver com isto? Deixando um pouco de parte a música, o impacto de Nevermind foi um fogacho que rompeu o domínio da mentalidade consumista a que o mundo estava submetido naquela época. E, simultaneamente, o exemplo de como o capitalismo joga todas as mãos com um trunfo no bolso: os putos niilistas de Aberdeen, uma pequena cidade no Noroeste dos EUA, tornaram-se de um dia para o outro estrelas planetárias, os heróis que vieram substituir Axl Rose e rock bem composto que formava o gosto da juventude. Como diz Mickey Rourke (outro herói dessa década) em The Wrestler, os Nirvaram chegaram e estragaram isto tudo. E o capitalismo abraçava os que o desprezavam - como sempre o fez.
 E é fácil de perceber como: a pose rebelde do hard rock era um postiço tão evidente como as lutas simuladas do wrestling. Axl Rose batia na namorada mas era um menino mimado com demasiado dinheiro nas mãos e um talento mais do que duvidoso (e nesta frase não entra Slash). As tabelas eram dominadas pelo eurotrash e a britpop ainda não atingira o seu auge. E, de repente, surge uma banda que na aparência tinha um som violento, que remexia as entranhas; e pareciam tão reais, as letras de Kurt Cobain, a sua dor. Os adolescentes marginalizados encontravam o seu herói; e a onda varreria o mainstream, o tal fogacho.
Ao longo do tempo, muito se escreveu sobre as razões por detrás do êxito. Chegou-se a acordo sobre um ponto: entre as linhas de baixo vigorosas de Krist Novoselic, a bateria pujante (e brilhante) de David Grohl, a acidez das guitarras e a voz agreste de Kurt Cobain, escondia-se uma doçura pop que devia mais aos Beatles do que ao punk. Em parte esta acepção é verdadeira: Cobain admirava a banda inglesa. Mas os especialistas musicais não precisariam de ir tão longe. No punk - a linhagem directa dos Nirvana - sempre houve muito pop. Ou será que os Ramones nunca ouviram Beach Boys? E os Sex Pistols, não serão eles um dos melhores exemplos de aproveitamente da cultura popular de sempre - a imagem, acima de tudo, a pose?
 In Bloom, a segunda faixa do álbum, é a prova disfarçada: no vídeo, a banda finge ser dos anos 60 - as raparigas gritam e puxam os cabelos, os rapazes deliram. A ironia provocatória da evocação era auto-indulgente. Servir os servos, como cantaria depois Cobain. As multidões ululantes eram servidas. Vendidos, sim, mas a gozar o melhor tempo da vida.
Os três sempre tiveram um sentido cénico insuperável. Cobain provocava, Novoselic seguia-o, Grohl é, sempre foi, um bom actor. Se assim é, o que diferenciava os Nirvana das bandas rock que os precederam? Encenar a verdade sempre foi o mais difícil. E Cobain acabaria por perceber isso demasiado tarde.
E a música, claro, a equação: um dos melhores baixistas rock dos últimos anos; um Cobain que decidiu incorporar melodias trauteáveis nas suas composições; e um baterista que entrou e revolucionou o som da banda. O que mudou, de Bleach para Nevermind, passou muito pela entrada de Grohl. As variações rítmicas de Nevermind - a tal cadência lento-rápido-lento roubada aos Pixies - encaixam-se na perfeição às melodias vocais e instrumentais. E a produção de Butch Vig aprimora o som, limpa-o de impurezas, corta e cola até se encontrar o single perfeito.
Mas as massas de jovens que os adoravam - no sentido religioso do termo - não poderiam perceber estas subtilezas. A eles - a mim - atraía o desespero urgente de dizer alguma coisa ao mundo. Os gritos de Cobain eram também os gritos dos jovens que o bem-estar material e o desconforto espiritual tinham castrado. Os slackers, os loosers (da canção de Beck), a geração rasca.

23/09/11

Cosmocópula

O corpo é praia a boca é a nascente
e é na vulva que a areia é mais sedenta
poro a poro vou sendo o curso de água
da tua língua demasiada e lenta
dentes e unhas rebentam como pinhas
de carnívoras plantas te é meu ventre
abro-te as coxas e deixo-te crescer
duro e cheiroso como o aloendro


Natália Correia

Wonder woman

Nikontruffaut

Vou subindo as escadas.

E a cada degrau vou esquecendo
a cadência vulgar do passeio;
turistas de Nikon ao peito, abandono-os
à sorte de uma vida estreita;
pouco depois, Truffaut à minha frente
e uma flor seca; e eu imagino chorar,
enquanto dou pão a um gato; o vazio
foi-se alojando nos ossos.

O frio que não faz, o romantismo esvai-se
(em sangue) e eu abraço-te.

Vamos; descendo as escadas.

21/09/11

Double Kool Thing

O sintoma

É revelador o tempo que David Lodge dispensa ao elogio dos escritores que conseguem criar personagens de carne e osso, mais próximas das pessoas do que a própria realidade nos permite estar. Do romance clássico de Jane Austen ao modernista James Joyce, acabando no pós-modernista Martin Amis, a análise que é feita parte sempre da capacidade que o romancista tem de revelar a consciência, o eu, das personagens. Se a bitola - de resto, toda a crítica anglo-saxónica repousa neste modelo - fosse aplicada aos romances de autores portugueses, viríamos a descobrir que desde o Modernismo - ou ainda antes, desde Eça - não existem verdadeiras personagens, antes tipos ou, na melhor das hipóteses, projecções do eu do autor. Da burguesia de Jorge de Sena às massas proletárias dos neo-realistas, das personagens conceptuais de Carlos de Oliveira aos bonecos do ventríloquo José Saramago, culminando no Lobo Antunes atomizado, que consegue, ao longo de dezenas de livros, inventar (?) personagens que falam e pensam sempre da mesma maneira, são poucos os escritores que escapam. José Cardoso Pires, Agustina, Mário de Carvalho, Mário Cláudio, mais um ou outro esporadicamente. E a nova geração parece ter aprendido as lições erradas - à excepção de Gonçalo M. Tavares. É raro o escritor português que domine o estilo indirecto livre - e é este o sintoma que denuncia a doença. 
Precisamos  de voltar a ler os clássicos, desta vez como deve ser.

...

Já não existem poetas;
o último morreu em agonia,
escrevinhando um ridículo poema de amor
para uma namorada cega.

16/09/11

Too afraid

"Honey, we all got to go sometime, reason or no reason. Dyin's as natural as livin'. The man who's too afraid to die is too afraid to live."

Cat people

Curiosa a tribo que formamos, sós
que somos sempre e à noite pardos,
fuzis os olhos, garras como dardos,
mostrando o nosso assanho mais feroz:

quando me ataca o cio eu toda ardo,
e pelos becos faço eco, a voz
esforço, estico e, como outras de nós,
de susto dobro e fico um leopardo

ou ando nas piscinas a rondar -
e perco o pé com ganas sufocantes
de regressar ao sítio que deixei

julgando ser mais fundo do que antes.
A isto assiste a morte, sem contar
as vidas que levei ou já gastei.

Margarida Vale de Gato, em Mulher ao Mar, ed. Mariposa Azual

13/09/11

Marketing, mas do bom

Estive a ler textos antigos. Em 2006, começava a reler Rentes de Carvalho. Em 1996, conhecia-o de nome, alguém que vivia na Holanda me falou do escritor português que vendia apenas por lá. Dois anos depois devo ter lido o primeiro livro dele. Já não tenho a certeza, e não estou com vontade de ir espreitar os livros de capa branca da Escritor. Agora, todos o lêem. Ainda bem. Nem todos os marketeers têm lugar reservado no Inferno.

12/09/11

A inconsciência e o romance

Calhou ter em mãos o livro de David Lodge, A Consciência e o Romance, quando me deparei com uma frase do escritor israelita Lev Grossman: «Being a novelist demands arrogance […] "To be a good critic, you have to be humble." Não há acasos que possam ser descuidados, mesmo em assuntos tão pouco importantes como a literatura, ou ridiculamente menores, como a crítica literária. Lodge é também um (excelente, embora não tão valorizado como deveria) romancista, mas é sobretudo respeitado pelo seu trabalho académico e crítico. O caso é simples: a arrogância deverá ser uma das qualidades de um bom escritor; a modéstia nunca terá sido boa conselheira. Depreendo que Grossman estará a falar daquela arrogância que obriga o escritor a prosseguir, quando a razão aconselha o contrário. A velha questão: como escrever, o que escrever, depois de tudo que já foi escrito? Imagino que a dúvida terá levado, ao longo do tempo, ao desespero e ao suicídio; ou pior, à desistência. Robert Walser foi dos mais sensatos: internou-se num hospício e inventou uma escrita aparentemente indecifrável (até alguns investigadores com demasiado tempo em mãos a terem decifrado), até à morte - de resto excessivamente romântica para os usos da época; nem a tísica, nem a morte de amor, nem a descoberta de um corpo sobre a neve; tudo tão batido como o ferro às mãos do metalúrgico.
Mas há quem continue a escrever; e publique; e apareça em todo o lado envergando o sobretudo do "autor". Um mercado dentro do capitalismo, vivo e aparentemente de boa saúde. David Lodge acha que foi Charles Dickens o primeiro autor famoso. Não uma celebridade - outros já o tinham sido antes dele. Famoso. Não sei se terá sido Dickens o único autor famoso que tinha, digamos, qualidades inegáveis como escritor. Depois dele, a decadência.
O problema de muitos escritores contemporâneos é que lhes sobra em empáfia o que lhes falta em talento. A arrogância não será uma virtude, mas sim uma necessidade. Para continuar. E falhar. E voltar a tentar.
Quanto à humildade do crítico, a verdade da frase de Grossman é mais um desejo do que a realidade. Como poderá um romancista conter um ego em busca de reconhecimento ao escrever sobre os outros? Os grandes conseguem. Os outros não são críticos. 

Contra Mundum

Se eu quiser procurar boa crítica literária nos jornais portugueses, dificilmente a encontrarei. As excepções a esta regra são submetidas ao espartilho cada vez mais estreito do limite de palavras. A blogosfera - por muito que António Guerreiro não queira - apoderou-se desse espaço deixado vazio pelos media tradicionais. Há alguns blogues que poderia dar como exemplo; todos estão na barra lateral. Desses destaco o Contra Mundum, pela rigorosa reflexão condensada em breves actualizações, ritmo de trabalho em progresso. Obrigatório.

11/09/11

As novas gerações

Um dia iremos acordar falidos,
sem nenhuma hipoteca moral que nos salve
da ruína - e isto não é uma metáfora,
a bancarrota virá e seremos arrastados,
e o que diremos então dos passivos, desnecessários,
do amor e da poesia e das tardes cismando
nas acções por concretizar, a maré baixa
do rio ecoando fantasmas.

Esse dia, radioso, em que a necessidade dispensa o ócio;
a utilidade que o tempo edifica,
preencher os minutos, correndo de um lado
para o outro, construindo coisas mais reais do que a estupidez
da literatura, os seus ocasos verbais
imagens de um qualquer tédio – aí chegados, nós,
reminiscência de um tempo que os jovens
não recordarão – assim se orgulham de ser as novas gerações.

O dia - negro, furioso - erguer-se-á com homens a cair de prédios altos,
esse movimento descendente ressoando outros homens do passado,
e o símbolo fixar-se-á ao eixo temporal como um alicerce de aço: quando
um mundo acaba, homens matam-se para fugir à morte,
e não lamentaremos a ironia da desgraça - uma certa beleza
deflagra no momento em que no ecrã o corpo é um risco
no céu, uma mancha contra a cidade que se prepara para a derrocada
como se fosse uma velha actriz na sua última estreia.

Mas este dia, hoje, é límpido, agora, é límpido e claro;
choveu de manhã, é certo, mas a tarde irrompeu
como um insecto da toca, colocámos sobre os joelhos
a velha manta da melancolia, ligámos a televisão
e adormecemos a ver um filme romântico; chega-nos isso.
O crédito que nos proporciona a felicidade não sofre
das flutuações do mercado, seremos náufragos num mar de hipotecas
furadas, remando contra a corrente das empresas falidas; amarrados

a uma proa, a salvo da morte das sereias, actores de uma epopeia
suburbana que apenas deseja ser lida nos corredores
dos supermercados e nos comboios que regressam a casa.

Moral? Não nesta casa; a tarde, incurável,
não deixa que a noite se inicie. O ritmo familiar
é uma venda nos olhos - seguir, sempre, em frente.

06/09/11

04/09/11

Jacqueline Bisset

Cathy: What will happen to us, in time?
Bullitt: Time starts now.

A eterna melancolia

Hoje chegou à fala a ideia de que nos lembramos de determinados momentos na nossa vida por causa de uma canção. Canções associam-se, nunca aleatoriamente, a acontecimentos. Esta evidência tem sido bastas vezes aproveitada pela ficção - na literatura como no cinema. Há filmes bons que se tornam muito bons quando o realizador (ou alguém por ele) tem a capacidade de pensar uma imagem e encontrar a música que a possa transcender. Na canção que a torna sublime. Ou na partitura que deixa a sua marca na memória. Sofia Copolla tem esse (não haverá outro modo de colocar a questão) dom. Desde o primeiro filme: a música atmosférica dos Air sublinhando o sonho de Virgens Suicidas; o romantismo indie da música original de Kevin Shields + a canção dos Air + o genérico final ao som de Jesus and Mary Chain de Lost in Translation; o rebuçado de pop melancólica dos New Order em Maria Antonieta. Não vi o seu último filme. Mas pode dizer-se, sem exagero, que Copolla é a cineasta da minha geração; o tédio da juventude, burguês e confortável, a eterna adolescência da geração Y. E a banda-sonora apropriada. Parece não poder terminar, o sonho da juventude.

Just like honey



Nunca uma canção terá sido tão bem usada num filme.

02/09/11

Momento Casanova

A última reformulação do suplemento Ípsilon parecia anunciar mudanças importantes. Num panorama de acelerada decadência dos suplementos culturais na imprensa escrita, foi importante a aposta do Público em artigos de fundo semanais, sobretudo porque os nomes convidados - Augusto M. Seabra e António Pinto Ribeiro - eram garantia absoluta de, como se costuma dizer, qualidade. Tem sido provado, ao longo dos últimos meses, que a decisão foi acertada - arrisco a subjectividade da observação sabendo que os números são o que dita a continuidade deste tipo de projecto. Com a circulação de jornais em acentuado declínio, provavelmente este acerto nada terá trazido de novo no aspecto comercial; e sabemos que, a longo prazo, tudo o que lamentamos será pouco, perante o que virá. Mas enquanto temos gente de quem gostamos a escrever para nós em jornais - e a troco de um valor, condição que ainda há pouco, por mais absurdo que nos pareça, foi posta em causa pelo novo dono do jornal I - desfrutemos do facto. 
Acrescente-se a estes nomes a "contratação" da época, Rogério Casanova. Numa espécie de troca com o Actual, do Expresso - Pedro Mexia partiu para essas paragens - Casanova chegou, viu e, claro, venceu. O crítico mais prodigiosamente canibalesco e intertextual das redondezas é também o que mais se aproxima do modelo da crítica anglo-saxónica. Dêem-lhe espaço e ele brilhará - como o fazem os números 10. Acontece hoje - o texto de 4 páginas (um merecido luxo) sobre David Foster Wallace beija ao de leve o génio de um ensaio do próprio David Foster Wallace. Sei bem que a influência das leituras pode ser uma maldição - já nem vou pela coisa da angústia; Harold Bloom é, digamos, sobrevalorizado - mas, no que interessa, Casanova acerta. A flexibilidade do seu pensamento é a prova das muitas horas perdidas a malhar - hermeneuticamente falando - em Foster Wallace. E em James Wood, não descuremos essa aprendizagem. Depois do "momento Federer" e do "momento Foster Wallace", arrisco dizer que deveremos começar a pensar no "momento Casanova", numa banca perto de si. Se foi para isto que a sua Pastoral Portuguesa embarcou num prolongado pousio, abençoada reforma agrária.

(O retrato foi tirado pelo conhecido artista hiper-realista Pedro Vieira.)