Neste assunto da memória, apenas posso confiar, verdadeiramente, naquela que tenho. E a que tenho lembra-se de apagar dos seus arquivos factos que, na altura em que sucederam, foram marcantes.
Em questões de livros, por exemplo, a minha memória assemelha-se, não tanto a um queijo suíço, mas a um pântano pejado de charcos onde estagnam todas as obras marcantes da primeira fase da idade adulta. A verdade é esta: recordo melhor os livros que lia aos 11 anos do que aqueles que folheei naquele período nebuloso entre os 16 e os 25 anos. Clarificando: tenho os livros nas prateleiras, passo os dedos por eles, e de cada vez que isso acontece, lembro-me vagamente da história, da época em que o comprei, com sorte do local onde o encontrei (em grande parte dos casos, nas minhas incursões pela Feira do Livro). Mas na realidade muitos dos que li não se fixaram, não deixaram cicatriz visível no passado. Por outro lado, ainda me lembro de muitas histórias d'Os Cinco, de todos os livros do Julio Verne, de todos os romances de Agatha Christie que li; apesar de não ter os livros - vivi numa aldeia, e passei a minha infância e adolescência a requisitar livros a bibliotecas escolares, municipais, e a uma carrinha da Gulbenkian que, uma vez por mês, passava pelo centro da aldeia e ali ficava parada durante o tempo suficiente para que a meia-dúzia de leitores renovasse requisições ou escolhesse livros novos. Talvez a selectividade da memória tenha apenas a ver com a construção da infância, o lugar idílico perdido no tempo. Ou então a nostalgia acolhe apenas as raridades, as singularidades de uma vida. E ler, para quem cresceu numa casa sem livros, era um acontecimento, porque não dizê-lo, e caindo no sentimentalismo, mágico.
Portanto, não me perguntem sobre as minhas obras-primas da década dos vinte, quando o gosto se começava a sedimentar; as fundações do leitor que sou vão mais fundo, ao tempo da biblioteca itinerante da Gulbenkian. Ao tempo em que fiquei com dois livros requisitados para sempre (nunca os devolvi). Não sei onde estão agora esses livros (talvez ainda sobrevivam nos escolhos da casa de infância); mas lembro-me muito bem de quais eram, tantas foram as vezes que os li, na falta de outras obras - um chamava-se Grandes Exploradores, e era uma série de mini-biografias de aventureiros de sempre, piratas e marinheiros, exploradores do Ártico e aviadores. O outro era um livro de histórias sobrenaturais, relatos de desaparecimentos no Triângulo das Bermudas e aparições do Holandês Voador, visões de fantasmas e esqueletos que mudavam de lugar.
Apesar de não os ter nas minhas estantes, a memória encarregou-se de os tornar mais reais que muitos que agora observo; um livro é tudo o que está para lá das páginas.
(Texto publicado primeiro no Arte de Ler)
[Sérgio Lavos]
Em questões de livros, por exemplo, a minha memória assemelha-se, não tanto a um queijo suíço, mas a um pântano pejado de charcos onde estagnam todas as obras marcantes da primeira fase da idade adulta. A verdade é esta: recordo melhor os livros que lia aos 11 anos do que aqueles que folheei naquele período nebuloso entre os 16 e os 25 anos. Clarificando: tenho os livros nas prateleiras, passo os dedos por eles, e de cada vez que isso acontece, lembro-me vagamente da história, da época em que o comprei, com sorte do local onde o encontrei (em grande parte dos casos, nas minhas incursões pela Feira do Livro). Mas na realidade muitos dos que li não se fixaram, não deixaram cicatriz visível no passado. Por outro lado, ainda me lembro de muitas histórias d'Os Cinco, de todos os livros do Julio Verne, de todos os romances de Agatha Christie que li; apesar de não ter os livros - vivi numa aldeia, e passei a minha infância e adolescência a requisitar livros a bibliotecas escolares, municipais, e a uma carrinha da Gulbenkian que, uma vez por mês, passava pelo centro da aldeia e ali ficava parada durante o tempo suficiente para que a meia-dúzia de leitores renovasse requisições ou escolhesse livros novos. Talvez a selectividade da memória tenha apenas a ver com a construção da infância, o lugar idílico perdido no tempo. Ou então a nostalgia acolhe apenas as raridades, as singularidades de uma vida. E ler, para quem cresceu numa casa sem livros, era um acontecimento, porque não dizê-lo, e caindo no sentimentalismo, mágico.
Portanto, não me perguntem sobre as minhas obras-primas da década dos vinte, quando o gosto se começava a sedimentar; as fundações do leitor que sou vão mais fundo, ao tempo da biblioteca itinerante da Gulbenkian. Ao tempo em que fiquei com dois livros requisitados para sempre (nunca os devolvi). Não sei onde estão agora esses livros (talvez ainda sobrevivam nos escolhos da casa de infância); mas lembro-me muito bem de quais eram, tantas foram as vezes que os li, na falta de outras obras - um chamava-se Grandes Exploradores, e era uma série de mini-biografias de aventureiros de sempre, piratas e marinheiros, exploradores do Ártico e aviadores. O outro era um livro de histórias sobrenaturais, relatos de desaparecimentos no Triângulo das Bermudas e aparições do Holandês Voador, visões de fantasmas e esqueletos que mudavam de lugar.
Apesar de não os ter nas minhas estantes, a memória encarregou-se de os tornar mais reais que muitos que agora observo; um livro é tudo o que está para lá das páginas.
(Texto publicado primeiro no Arte de Ler)
[Sérgio Lavos]
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